Folha de S. Paulo


Análise: Fofura interiorana se mistura à intolerância ao casamento gay

Para avaliar melhor as reais chances de dom Odilo Scherer, eu tinha dado uma olhada nos jornais argentinos destes últimos dias. Até eles, pelo que pude ver, colocavam o brasileiro como favorito.

A surpresa, portanto, não poderia ser maior. O próprio Jorge Mario Bergoglio, ao surgir na janela e dizer suas primeiras palavras, parecia completamente atônito.

Tanto que sua primeira frase foi a menos papal, e a menos preparada que se pudesse imaginar: "Boa noite".

Como assim, "boa noite"? Ao fundo, uma bandinha tocava. No final do discurso, Bergoglio se referiu a ter sido eleito bispo "desta bela cidade".

O papa, como se sabe, é o bispo de Roma. Mas dizer, naquela praça onde se reuniam pessoas de todas as partes do mundo, que Roma "é uma bela cidade" intensificou a nota interiorana da ocasião.

O Vaticano se tornou, de repente, muito simples. O nome escolhido por Bergoglio, o de Francisco, também contribui para essa imagem de modéstia e de pobreza, ao lembrar o santo de Assis.

É sabido que, em Buenos Aires, ele prefere morar num apartamento pequeno a ocupar o palácio arquidiocesano; que anda de ônibus e cozinha as próprias refeições.

Apareceu na sacada (eu ia dizendo "janelinha", mas é bem grande) só com as roupas brancas, sem a estola vermelha --que só apareceu depois.

Mais significativo do que tudo isso foi o fato de que Bergoglio, em vez de sair abençoando a multidão, pediu primeiro uma bênção dos fiéis para ele próprio.

Nomes próprios têm certa mágica. Sem dúvida, Bergoglio não rima, neste momento, com "orgoglio", orgulho.

Inevitável a multiplicação de piadinhas sobre o fato de termos um papa argentino. Detestando os preconceitos com nossos vizinhos, fico feliz de registrar uma primeira impressão auspiciosa: temos um argentino humilde no papado.

Reformador? "Progressista"? Midiático? Burocrata? Talvez a tentativa, ou o mistério, da escolha tenha sido buscar uma figura que transcendesse as divisões e impasses reais do Vaticano, alçando a figura papal a uma espécie de nuvem de fofura, branquinha como a fumaça que saiu da chaminé nesta tarde --e como a lã que cobre o cordeiro de Deus.

Não se trata daqueles prodígios de simpatia pelos quais eu estava torcendo.

O americano Dolan, de proporções pantagruélicas, aparecia num vídeo às gargalhadas, com uma tremenda marreta nas mãos, para inaugurar não sei que reforma nas paredes de um edifício. O filipino Luis Tagle chora como um menino ao ser nomeado cardeal, e ri como num desenho animado durante uma homilia.

Ainda assim, Bergoglio rompe com a antipatia e o aspecto robótico que, tanto quanto a sofisticação intelectual, têm sido a tônica dos anos Ratzinger.

Será suficiente a cordura do novo papa? Cito suas palavras a respeito do casamento gay, aprovado há pouco tempo na Argentina.

O debate não era apenas "uma luta política", disse ele, mas "uma pretensão destrutiva aos planos de Deus". Mais do que isso, é um lance do "pai da mentira".

O casamento gay, trovejava Bergoglio, é fruto da "inveja do demônio, pela qual o pecado entrou no mundo, e cuja artimanha pretende destruir a imagem de Deus".

Santo homem.

Mas o Brasil não aguenta ficar para trás. Tem o seu primeiro clérigo xiita, o paulistano Rodrigo Jalloul, no caminho de uma escalada ao posto de aiatolá.


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