Folha de S. Paulo


Análise: Obsessão por apoio do Conselho de Segurança é equivocada

Em março de 2003, os EUA e o Reino Unido decidiram invadir o Iraque e depor Saddam Hussein. Muitas coisas aconteceram desde então, mais notavelmente a onda de revoluções da Primavera Árabe, que poderia eventualmente ter afastado Saddam do poder sem uma intervenção.

Diário de Bagdá - Dez anos depois
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Mas hoje, dez anos mais tarde, os EUA, o Reino Unido e o Oriente Médio ainda vivem à sombra daquela decisão fatídica.

Duas perguntas se impõem. A invasão foi justificada? E o que aprendemos com ela?

A resposta à primeira é um "não" retumbante. Saddam era um tirano cujo histórico de atuação no Kuait e contra os curdos preocupava o Ocidente, com razão. Mas a tentativa da administração Bush, depois do 11 de setembro, de vincular Saddam a Osama bin Laden, retratando-o como parte de alguma ameaça muçulmana extrema à América, foi um erro.

Os EUA e o Reino Unido exageraram tremendamente as armas de destruição em massa do Iraque. A guerra foi travada com base na premissa de que o Ocidente poderia levar democracia instantânea ao país. Sobretudo, ela mergulhou os EUA e o Reino Unido num conflito de oito anos de duração que desviou sua atenção da urgência de garantir a segurança no Afeganistão, fato que atrasou e terminou por prejudicar o progresso nesse país.

A invasão do Iraque foi possivelmente o maior erro diplomático do período do pós-Segunda Guerra Mundial.

Quanto às lições, os EUA e o Reino Unido aprenderam e aplicaram uma lição chave: a necessidade de cautela em relação ao tipo de intervenção com tropas em campo vista no Iraque e Afeganistão. Na Líbia, o Ocidente se limitou, corretamente, a uma campanha por ar e mar que reduziu as baixas civis e da Otan.

Mais significativamente, contudo, os governos ocidentais hoje dão ênfase maior ao envolvimento do Oriente Médio e africano em intervenções regionais. Forças francesas estão atuando no Mali. Mas a França ressaltou desde o começo que o Mali e outros Estados africanos precisam responsabilizar-se pela segurança de mais longo prazo.

Nem todas as lições têm sido positivas, porém. Essa nova relutância em intervir vem impedindo as potências ocidentais de dar ajuda militar crucial aos rebeldes sírios, num conflito que já deixou 70 mil mortos. Mas pelo menos é correto que agora os EUA estejam tendendo a dar apoio mais direto a combatentes não jihadistas.

A invasão do Iraque também marcou a diplomacia ocidental. Hoje existe uma regra extra-oficial prevendo que intervenções militares precisem contar com o respaldo do Conselho de Segurança da ONU. Isso é preocupante. Em 1999, a Otan agiu sem esse apoio para tirar a Sérvia de Kosovo. Hoje essa intervenção é elogiada, qualificada como uma guerra justa. A obsessão por ter o apoio do Conselho de Segurança em todas as ocasiões deveria ser revista.

Finalmente, a aventura iraquiana deixou os públicos ocidentais céticos demais em relação a informações de inteligência que sugiram que Estados párias possam contar com armas de destruição em massa.

Desde então, organismos ocidentais vêm constantemente subestimando as capacidades do Irã, Coreia do Norte e Síria, fato evidenciado pelo surgimento repentino de usinas secretas de enriquecimento de urânio nos primeiros dois países e do reator nuclear sírio.

Exagerar o potencial das armas de destruição em massa de Saddam, em 2003, foi um erro terrível. Mas não devemos pressupor que o mesmo exagero esteja sendo cometido em relação ao Irã ou à Coreia do Norte. É possível que o Ocidente esteja cometendo o erro exatamente inverso.

Tradução de CLARA ALLAIN


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