Folha de S. Paulo


Opinião: O que fizemos com o Iraque? O remorso de um veterano

Iraque. Todos nós já estivemos lá, dez anos já tendo se passado desde aquela corrida para atravessar as areias mesopotâmicas, em março de 2003.

Uma de minhas melhores recordações do tempo passado ali foi de uma patrulha feita ao meio-dia em 2004 nas ruas de Al Amarah, uma cidade na província de Maysan, no sudeste do país. A temperatura passava de 40º C, linhas de sal de transpiração evaporada cobriam meu uniforme de deserto, e todos os músculos do meu corpo estavam doloridos.

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Quando o grupo fez uma pausa, vi um homem iraquiano saindo de um barraco. Ele se aproximou de mim com um grande sorriso estampado no rosto, carregando uma bandeja metálica sobre a qual havia um copinho de chá fumegante e cheio de açúcar.

"Shukran jazelan", eu disse, agradecido e entre lábios rachados, tomando o chá mais saboroso de minha vida.

Eu diria que há alguns pontos a serem aprendidos com aquele incidente. O caso ressaltou a cordialidade e hospitalidade inatas dos iraquianos, que tende a ser comum entre os habitantes do Oriente Médio. De modo geral, os muçulmanos são pessoas amigáveis, sociáveis. E, em vista do grau de boa vontade com que fomos recebidos, o incidente revela a magnitude da traição cometida pelos militares da coalizão e, por extensão, pelas populações dos países que os enviaram ao Iraque.

Hoje em dia não acho fácil olhar um iraquiano nos olhos, e não vejo como muitas pessoas nos EUA e Reino Unido consigam fazê-lo.

Minha carreira no Exército britânico durou nove anos, começou em 2001 e abrangeu a debacle do Iraque do começo ao fim. Qual é o sentimento que fica num veterano da guerra do Iraque? Para mim, para começar, um sentimento de culpa coletiva por ter participado de algo que causou a morte de estimados 120 mil civis e demoliu um país.

E isso é antes mesmo de mencionarmos o sentimento de culpa pessoal por fracassos individuais. Para mim, o fato de não ter dado atenção a uma mãe iraquiana na entrada do campo Abu Naji, nos arredores de Al Amarah, quando ela veio perguntar sobre o paradeiro de seu filho detido numa operação algumas noites antes, é apenas um dos exemplos.

Realmente não sei o que aconteceu com o filho dela, e uma verificação superficial junto à sala de operações indicou que ninguém mais sabia. Mas até hoje não me conformo por não ter me esforçado mais para fazer algo por ela.

Tratava-se, afinal, de uma mãe perguntando por seu filho --um custo emocional e doloroso que continua presente no caso de cada homem iraquiano, insurgente, "raghead" (termo pejorativo para indicar árabes ou outros que usam turbantes) --ou qualquer outro rótulo redutivo que empregássemos-- que abatemos a tiros ou bombas, que interrogamos, algemamos, encapuzamos, etc.

Não há como desculpar meu comportamento, mas, ao tentar me aferrar a alguma justificativa do que estávamos fazendo, eu já tinha começado a sentir que o empreendimento inteiro --e meu papel nele-- era equivocado. Esse sentimento se intensificou com o passar dos anos, também durante minha segunda passagem pelo país, em 2006, que culminou com a compreensão aflitiva de que o imperador estava nu.

Todo aquele discurso desgastado e aqueles conceitos grandiosos de construir uma nação e levar democracia a ela, tudo isso desmoronou sob a realidade triste e a ausência de sentido que encontrei no Iraque.

Amigos meus foram mortos em helicópteros derrubados ou decapitados por veículos em movimento. Mães iraquianas choravam alto e batiam com os punhos no peito, enquanto os oficiais (dos quais eu fazia parte) se aferravam a sua soberba militar. Soldados foram deixados sem controle, com toda sua ignorância belicosa, e as forças especiais agiam livremente, sem freios.

Os empresários que cumpriam contratos para o governo americano demonstraram cobiça e ineficiência espantosas quando puderam preencher cheques nos valores que bem entendessem, e o Departamento de Desenvolvimento Internacional do governo do Reino Unido mostrou que seu título era tão impróprio quanto foi equivocada a frase "missão cumprida", de George H. W. Bush. E a lista continua.

É claro que houve pessoas corajosas e de atitude profissional no meio dos muitos grupos e instituições acima citados. Essas pessoas fizeram o melhor que puderam, e até mesmo realizaram algo positivo. Mas, lamento dizer, coletivamente falando --e é isso o que conta--, o que foi feito não foi bom o suficiente, nem chegou perto disso. Nosso fracasso em cumprir nosso dever em relação ao povo iraquiano foi colossal.

Acho que poucos de nós compreendemos quão graves eram --ou ainda são-- as disputas sectárias que continuam na esteira de nossa intervenção fracassada.

Terá a guerra sido um experimento social em escala internacional? Ou uma aventura do tipo romântico, imperial, para saber se ainda possuíamos a força para algo assim? Será que alguém poderia me explicar? Mas o mais importante seria que alguém explicasse aos iraquianos.

Tudo isso torna nossa conduta atual ainda mais imperdoável. As omissões e os fracassos passados estão sendo agravados por algo que talvez seja o maior crime do Reino Unido: fazer o papel de Pôncio Pilatos e praticamente se abster da reconstrução do país que ele ajudou a desmembrar.

O consulado britânico em Basra, onde prestei meu período de serviço militar inútil em 2006 e de onde se deu a vergonhosa retirada do Exército britânico em 2007, foi fechado no final de 2012. Não estamos exatamente fazendo grande esforço de reparação.

Some-se a isso o fato de que falar no décimo aniversário na realidade é certa hipocrisia, considerando que o Iraque foi criado em 1920 como mandato britânico. Foi um período muito longo de interferência equivocada britânica. Mas o engraçado --talvez seja a única coisa engraçada que resta-- é que os iraquianos provavelmente não vão rejeitar a possibilidade de trabalhar com empresas britânicas, por exemplo, no futuro. É aquele lado hospitaleiro deles.

Acho que nunca voltarei a encontrar o homem do chá, nem saberei o que foi feito dele. Mas, apesar de todos os fracassos e os remorsos, tenho grande desejo de rever o cintilante rio Tigre em Al Amarah, algum dia. Era um lugar lindo, quando ninguém estava atirando em nós. E o povo era simpático.

Tradução de CLARA ALLAIN


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