Folha de S. Paulo


Diário de Bagdá, 2003 - Marines invadem quartos de repórteres

Leia texto publicado em 16 de abril de 2003 como parte do "Diário de Bagdá", relatos do jornalista Sérgio Dávila e do repórter fotográfico Juca Varella, enviados da Folha a Bagdá por ocasião da invasão americana ao país.

"No dia em que a tomada de Bagdá completou sua primeira semana, os marines norte-americanos baseados na capital iraquiana invadiram alguns quartos do 9º e do 17º andares do hotel Palestine, onde está hospedada a maioria dos jornalistas estrangeiros e onde fica o comando militar provisório da capital -além dos próprios marines.

Em alguns casos, entraram chutando e arrombando a porta. Em outros, bateram primeiro. Em todos, o hóspede tinha de ficar agachado e com as mãos na cabeça enquanto eles revistavam o lugar. Os soldados procuravam "armas e pessoas não-amigáveis em relação aos Estados Unidos", segundo disse depois um dos comandantes.

A maior parte dos apartamentos invadidos era ocupada por jornalistas.

Teriam prendido três homens, cujos dados não foram divulgados. As acusações sob as quais foram presos também não foram fornecidas para a imprensa.

O Palestine é o mesmo hotel cuja fachada foi atingida por um tiro de canhão norte-americano na terça-feira da semana passada, matando dois cinegrafistas e ferindo outros quatro profissionais de imprensa.

Um dos quartos invadidos foi o do repórter português Carlos Fino, da emissora RTP. Indagado sobre "armas escondidas", ele mostrou sua caneta, seu bloco de anotações e a câmera de seu cinegrafista.

"Estas são as armas neste hotel. É por isso que, de vez em quando, vocês dão tiros de tanque em nós", disse ele.

Fino foi o primeiro jornalista de todo o mundo a noticiar o começo da guerra na televisão. Por coincidência, estava transmitindo ao vivo da varanda de seu apartamento no exato momento em que o primeiro míssil atingiu o primeiro prédio em Bagdá, na madrugada de 20 de março.

FOLHETOS

Ontem ainda os soldados norte-americanos distribuíram folhetos em inglês e árabe em que exortavam a população bagdali a não sair de casa depois da oração noturna e antes da matinal _ou seja, enquanto estiver escuro na cidade.

"Durante esse período, forças terroristas associadas ao antigo regime de Saddam Hussein, assim como vários elementos criminosos, movimentam-se pela região e realizam atos hostis", dizia o comunicado.

Realmente, a maior parte dos embates entre a coalizão e a resistência acontece à noite. Ontem mesmo, pelo menos dois tiros de tanque foram disparados perto das 20h locais (13h do Brasil).

O panfleto dava também instruções sobre como não ser confundido com um dos "elementos criminosos". "Aproxime-se das forças com extrema cautela. Deixe o mais evidente possível que você não representa uma ameaça. Evite carregar qualquer objeto que possa ser confundido com uma arma." Ordenava: "Ao ver um comboio militar se aproximando, tire seu carro da pista".

E concluía: "Nós estamos cientes de que somos convidados em seu país e faremos de tudo para manter sua confiança".

No mesmo dia, os marines e os manifestantes civis tiveram o atrito mais forte desde a chegada das tropas à capital. Dezenas de iraquianos tentaram forçar a entrada no hotel e foram contidos por fuzileiros, que chegaram a ferir e deter os mais exaltados.

Como consequência, os soldados decidiram dificultar o contato dos jornalistas com os manifestantes. Agora, a imprensa entra por um lado e os bagdalis ficam do outro. "Tivemos de colocá-los mais para trás, pois as pessoas só se manifestam porque vocês estão olhando", disse o coronel Zarcone.

TEORIA DA CONSPIRAÇÃO 'EXPLICA' DERROTA

Que Saddam Hussein está escondido na Embaixada da Rússia em Bagdá, ou na casa de parentes em Tikrit, ou fugiu para a Síria no porta-malas de um carro, ou continua andando incógnito a bordo de um táxi velho pelas ruas da capital iraquiana são boatos velhos, repetidos com pequenas diferenças diariamente pelas ruas daqui.

O que não tinha aparecido ainda era uma teoria para a (relativamente) rápida queda de Bagdá. Pois já apareceu, no formato de artigos e textos publicados por diversos jornais de língua árabe. Segundo a tese, o ex-ditador e equipe negociaram a entrega da capital sem muita resistência para a coalizão desde que pudessem deixar o país sem serem pegos.

É por isso que nenhum membro mais importante de seu ministério ou mesmo de sua família foi capturado -com a provável exceção de Ali Químico, que teria sido morto no sul, mas de quem ninguém viu o corpo até agora.

Enquanto isso, no Irã, dois jornais deram que teria se suicidado o ex-ministro da Informação Mohammed Said al Sahaf, que virou figura cult na internet e ganhou sites dedicados a suas frases desprovidas de realidade durante a guerra. Para quem foi a mais de dez entrevistas coletivas protagonizadas por ele, a impressão é de que Sahaf não se suicidaria.

Pela primeira vez desde que Saddam Hussein tomou o poder, em 1979, alguém pôde distribuir na capital panfletos com fotos do líder curdo Massoud Barzani sem que estes dissessem "Procura-se -Vivo ou morto". Era um solitário manifestante recém-chegado do Curdistão, que entregava folhetos exaltando o presidente do Partido Democrático do Curdistão.

Reabriu anteontem o restaurante Nabil, um dos mais caros de Bagdá -US$ 15 uma refeição completa. Por enquanto, funciona com um cardápio reduzido: espaguete italiano (na verdade, à bolonhesa) e espaguete mexicano (na verdade, com pepino -?- e filé fatiado). Mas as filas na porta têm outra explicação: é um dos únicos lugares de Bagdá que servem cerveja com álcool.

Os meninos voltaram a pescar às margens do Tigre, na rua Sadeh.

Os quarteirões à beira-rio do endereço que reunia nove entre dez figurões do regime de Saddam Hussein eram proibidos para os bagdalis "mortais". Não mais. Desde a queda do regime, primeiro as casas foram saqueadas (entre elas a do ex-vice-premiê Tariq Aziz). Agora, o povo começa a chegar aos poucos para aproveitar a liberdade de poder frequentar a margem esquerda do Tigre.

Ontem, vários meninos nadavam e pescavam no deck que antes era exclusividade de Tariq Aziz. No muro da casa que um dia foi dele, alguém pichou: "Propriedade devolvida aos donos originais".

A única sede de ministério, além da do Petróleo, que não foi bombardeada e que desde o começo conta com a proteção integral dos marines em Bagdá? A do Interior, a mesma que era responsável pelas dezenas de polícias secretas criadas por Saddam Hussein.

A gasolina barata, um dos maiores orgulhos do iraquiano, já é história. Pelo menos em Bagdá. Até mesmo durante a fase dos bombardeios desta guerra, cem litros de gasolina saíam por US$ 0,50 -barato mesmo para os padrões do país, onde o salário médio era de US$ 30.

Agora, com a escassez do produto, que parou de ser refinado por Doha, principal fornecedora da capital, dez litros não saem por menos de US$ 5. Ou seja, paga-se dez vezes mais para comprar dez vezes menos."

Sérgio Dávila é enviado especial da Folha ao Iraque

Juca Varella, fotógrafo, é enviado especial da Folha ao Iraque


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