Folha de S. Paulo


Diário de Bagdá, 2003 - Polícia volta às ruas, sem armas e com marines

Leia texto publicado em 15 de abril de 2003 como parte do "Diário de Bagdá", relatos do jornalista Sérgio Dávila e do repórter fotográfico Juca Varella, enviados da Folha a Bagdá por ocasião da invasão americana ao país.

"A polícia começou a voltar precariamente às ruas de Bagdá ontem, em patrulhas conjuntas com marines norte-americanos. Cerca de 2.000 voluntários, a maioria ex-policiais, se apresentaram na manhã de ontem no quartel-general da força atendendo a apelos feitos durante todo o fim de semana pela rádio da coalizão anglo-americana para que o policiamento da cidade fosse retomado.

A princípio, os iraquianos estão saindo desarmados, em trajes militares, mas também à paisana, em grupos de quatro e sempre acompanhados por soldados.

A nova força foi convocada como primeiro passo para acabar com a onda de saques que tomou a cidade e deixou um rastro de destruição e de incêndios em todos os bairros. "É o primeiro passo para que Bagdá volte ao normal", disse o general Zuhair Al Nuami, ex-comandante da polícia local, que agora atua sob a supervisão de um representante do Exército norte-americano.

Além do patrulhamento das ruas, uma das primeiras missões da nova força foi parar carros suspeitos ou com cargas suspeitas em busca do fruto de pilhagem. Nas diversas pontes que cruzam o rio Tigre e ligam os dois lados da cidade, era possível ver bloqueios feitos por veículos militares norte-americanos em que marines e policiais trabalhavam juntos nas revistas. As apreensões eram empilhadas nas calçadas e iam de cadeiras a rádios antigos, passando por camas e talheres.

Outra missão da nova polícia beira o irônico: tentar recuperar seus próprios carros. É que a maioria dos Nissan Maxima usados pelas delegacias antes da queda do regime foi roubada nos dias de saque que se seguiram à queda do regime, na quarta passada.

Os carros que sobraram, no entanto, começaram a deixar a sede central da polícia ao longo de todo o dia de ontem. Ao passar pelas principais ruas da cidade, muitos dos pequenos comboios foram recebidos com aplausos e gritos de alegria dos pedestres.

SADDAM E A POLÍCIA

"Quando ouvi o chamado da rádio da coalizão, resolvi me apresentar para voltar ao trabalho, mesmo tendo sido convocado por marines", disse à Folha o major Abdul Gafor-Mahmoud.

Antes disso, ele tinha receio de sair às ruas com seu uniforme verde-oliva e correr o risco de ser identificado com um simpatizante do regime recém-derrubado. "Mas é um erro relacionar as polícias municipais a Saddam Hussein", disse ele.

Segundo Gafor-Mahmoud, o ex-ditador iraquiano privilegiava os diversos serviços secretos e guardas militares que foi criando ao longo de três décadas de governo e deixava a polícia relegada a segundo plano. "Cada delegacia tinha direito a apenas um carro novo por ano, e para nós sobravam sempre as armas mais velhas", afirmou. "A polícia de Bagdá odiava Saddam Hussein."

Para organizar o patrulhamento, o comando militar norte-americano dividiu a cidade em 60 regiões e afirma que encontra bolsões de resistência em até 15 delas, cada uma com entre 5 e 25 soldados ou milicianos, a maioria composta de árabes não-iraquianos, geralmente com passaporte sírio ou palestino.

Estes últimos, no entanto, só serão combatidos pelos marines, não cabendo aos policiais iraquianos o confronto direto.

Antes de saírem de volta às ruas, os policiais iraquianos ouviram um discurso do general Mohammed Al Bandar, um dos comandantes locais. "Tratem os cidadãos como se eles fossem seus irmãos, seus amigos", disse ele. "O cidadão tem de sentir a mudança, nós agora estamos em uma democracia."

Visão diferente tinha o marine que acompanhou um dos primeiros comboios. "Nós vamos atirar em qualquer um que esteja carregando uma arma e tenha uma atitude ameaçadora."

EMBAIXADA BRASILEIRA ESCAPA DOS SAQUES

Entre as diversas embaixadas que se espalham pelo bairro de Al Mansur, perto da "nova mesquita" de Bagdá, pelo menos uma foi poupada: a brasileira. Levaram apenas a bandeira do país, que não tremula mais no mastro da construção modernosa de propriedade de um iraquiano que a aluga ao Itamaraty.

Não é propriamente uma embaixada, mas uma casa que guarda os arquivos dos interesses brasileiros no país. A representação mesmo fechou no começo dos anos 90, devido à Guerra do Golfo. Em seu segundo mandato, o ex-presidente FHC quis reabri-la, mas acabou desistindo. Hoje, há apenas um funcionário, que se reporta à embaixada de Amã, na Jordânia. É o poeta iraquiano-brasileiro Auni Audari.

Ontem de manhã, durante a visita da Folha ao local, vigilantes civis armados de fuzis AK-47 contratados pelos moradores da região cercavam a casa. Eles achavam que havia um ladrão lá dentro, o mesmo que viria agindo em diversas embaixadas desde a queda do regime de Saddam Hussein.

Ninguém apareceu ou foi preso.

A representação brasileira fica em frente à "nova mesquita" -não confundir com a "grande mesquita", que ocupa o terreno do antigo aeroporto internacional da cidade. Ambas são estruturas gigantescas de concreto abandonadas; o ex-ditador iraquiano prometeu fazer as duas maiores mesquitas do mundo na capital, mas nunca concluiu as obras.

Por ironia do destino, uma das primeiras embaixadas a ser saqueada pelo povo bagdali foi a da Alemanha, país que, com a França, foi o principal defensor da solução diplomática para a questão iraquiana. Saqueada e depois queimada. Não sobrou nada.

Não muito distante da representação brasileira, no mesmo bairro, estão as quatro casas destruídas na terça-feira passada por bombas da coalizão anglo-americana, que tinha informações de que Saddam Hussein e seus dois filhos estavam se reunindo lá. No último fim de semana, o lugar virou ponto de romaria.

Não exatamente romaria: os iraquianos que visitam as ruínas das casas querem se certificar se Saddam Hussein morreu mesmo, informação que os serviços de inteligência dos EUA não foram capazes de confirmar até agora.

O local, próximo da Avenida 14 Ramadã, na verdade uma cratera de oito metros de diâmetro e com o dobro disso de profundidade, está sendo chamado de "o túmulo de Saddam". No dia do bombardeio, o presidente teria chegado com Abed Hmud, seu assistente pessoal, às 10h, e saído antes que as bombas caíssem.

Segundo um vizinho, uma das propriedades funcionava como um escritório secreto do regime e estava alugada em nome de Falih Al Azawi, secretário de Qusay Hussein, filho do ex-ditador.

Este era o menos problemático dos dois. O mais temido era Uday, o primogênito. Pois foi num dos palácios dele que os marines encontraram ontem muita bebida (proibida pelo islamismo), pornografia (idem), aparelhos eletrônicos de última geração e charutos cubanos. Tudo normal. O problema foram as fotos que estavam pregadas numa das paredes do ginásio particular.

Eram todas com as gêmeas Bush, as filhas pós-adolescentes do presidente dos Estados Unidos, em diversas poses e situações.

Por via das dúvidas, os marines arrancaram as imagens."

Sérgio Dávila é enviado especial da Folha ao Iraque

Juca Varella, fotógrafo, é enviado especial da Folha ao Iraque


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