Folha de S. Paulo


Diário de Bagdá, 2003 - Saddam Hussein, 20, é ferido por explosão

Leia texto publicado em 30 de março de 2003 como parte do "Diário de Bagdá", relatos do jornalista Sérgio Dávila e do repórter fotográfico Juca Varella, enviados da Folha a Bagdá por ocasião da invasão americana ao país.

"Saddam Hussein foi atingido anteontem à noite por um míssil. Com a explosão do armamento, perdeu parte do braço esquerdo, cujo resto foi amputado ao chegar ao hospital mais próximo.

Agora, está sentado na cama da enfermaria com outros sete pacientes enquanto olha o repórter e o fotógrafo olharem para ele. Onde antes havia o braço pode-se perceber o desenho de um coto, que tenta empurrar um pouco para fora os laços malfeitos das ataduras e dos curativos.

A seu lado, um homem aparentando uns 40 anos, com o rosto completamente queimado, se contorce de dor enquanto duas enfermeiras amputam parte dos dedos de sua mão esquerda, também destruída pela explosão de anteontem.

Os restos arrancados com instrumentos cirúrgicos caem numa bacia de água, já toda tomada pelo sangue. Saddam Hussein mantém o olhar quase parado ao observar calmamente seu vizinho, aparentando não se importar com a gritaria e com o cenário de fim de mundo que o cerca.

Saddam Hussein é estudante do segundo grau, tem 20 anos de idade, ganhou este nome do pai em homenagem ao presidente iraquiano e estava fazendo compras em Al Tadji, o paupérrimo centro comercial do paupérrimo subúrbio de Al Shola, localizado no norte de Bagdá, quando dois mísseis que supostamente seriam da coalizão anglo-americana teriam atingido por engano o meio da praça. Aconteceu às 18h30 locais (12h30 de Brasília) de sexta-feira. Com o impacto, morreram 58 pessoas e outras 49 ficaram feridas, crianças e mulheres entre elas, segundo autoridades iraquianas.

É o pior ataque a uma área civil na capital iraquiana desde que começou a guerra no país e o segundo em menos de 48 horas, o que tem revoltado a população local e unido a militares grande número de civis até então desmobilizados em manifestações de apoio a Saddam Hussein e repúdio aos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido.

"Não há nada militar naquela área", afirma Kamal A. Mustafa, diretor do hospital Al Noor, para onde foi levada a maioria dos feridos e dos corpos carbonizados após a explosão.

Mas há muita pobreza. O mercado cheira a fezes, porque o esgoto corre a céu aberto, nas guias das ruas.

Com o embargo econômico imposto ao Iraque depois da Guerra do Golfo de 1991 pela ONU -por iniciativa dos mesmos governos norte-americano e britânico-, o país está proibido de importar encanamento, pois é artigo de utilidade mista, tanto civil quanto militar. O resultado é que, quando um cano de saneamento quebra, permanece quebrado.

Pisando o chão, meninos descalços tentam desviar das poças infestadas de mosquitos e das marcas de sangue e de restos humanos deixados pela explosão. Quase no centro da praça uma pequena cratera de dois metros de profundidade por um de diâmetro, que seria de um dos mísseis derrubados. Ao lado, um par de chinelos marca o local onde uma das pessoas foi morta.

Próximo dos pequenos quiosques destruídos pelo impacto que circundam a praça, senhoras gordas vestidas de preto e com as cabeças cobertas choram enquanto contam o que ocorreu e amaldiçoam o presidente norte-americano George W. Bush.

"Isso acontece porque ele não tem nenhuma religião", grita uma delas, que embala -escondido sob um pano também preto-um bebê que também chora. As mulheres que a observam batem forte na própria testa com a mão direita, em sinal de penitência e desespero.

Homens começam a preparar o toldo onde será feito o funeral de três irmãos mortos no ataque, Ali, Hussein e Mohammed Ghafil, 21, 19 e 14 anos, respectivamente. Enquanto erguem a estrutura de metal, a multidão vem passando pelos braços um caixão que acaba de chegar do hospital.

É de um vizinho dos três irmãos, que tinha sido levado para a enfermaria, mas acabou não resistindo e morreu há minutos. Todos gritam palavras de ordem e cantam.

"Os Estados Unidos vão pagar caro por esta guerra", prometeu o ditador Saddam Hussein. O líder iraquiano, não o menino agora mutilado.

BEM-VINDO AO MARAVILHOSO MUNDO DE SADDAM

Este é o mundo de Saddam Hussein, nós apenas vivemos nele. Na eventualidade cada vez mais complicada de a coalizão anglo-americana tomar Bagdá e derrubar o governo atual, o Exército dos EUA vai ter de destacar um batalhão inteiro apenas para livrar a cidade da imagem do atual presidente iraquiano.

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Ele está em todos os lugares, e não vai aqui nenhuma figura de linguagem. São todos os lugares mesmo. A começar pelo dinheiro do país, o dinar iraquiano: a efígie de Saddam estampa as cédulas de todos os valores, de 250 dinares, a mais baixa, a 10 mil dinares, a mais alta. E as moedas.

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Nas centenas de praças que enfeitam Bagdá, há as mesmas centenas de estátuas do líder. Aí, acontece algo engraçado: ele ganha contornos de "action figure", aqueles bonequinhos americanos baseados nas HQs, em que o super-herói aparece em várias situações. Assim, temos o Saddam militar, o Saddam estadista, o Saddam de chapéu-coco e colete, com espingarda, o Saddam cavaleiro e até o Saddam xeque, vestido de líder tribal.

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Nos prédios públicos -e quase só há prédios públicos na capital-, o presidente geralmente dá as boas-vindas num mural na entrada, também em situações temáticas. Por exemplo: na sede da telefônica, ele fala ao telefone, sorridente, enquanto no orfanato federal ele segura uma criança. Camelôs vendem relógios com sua figura e cada parede de cada casa, loja, hospital, cinema traz um retrato do sorridente líder.

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Mas atenção: é proibido desenhá-lo. Classes de jardim da infância visitadas pela Folha traziam trabalhos infantis louvando o presidente, mas para representá-lo todos colavam uma foto.

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"Não é permitido", disseram. Caricatura e cartum, nem pensar.

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A TV iraquiana mostrou anteontem e ontem imagens de populares comemorando nas ruas a queda de um avião não-tripulado Predador, americano. É o quarto derrubado até agora, disse o ministério da Informação do Iraque.

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Ainda da série "inocência iraquiana". A brincadeira mais comum entre os guias que atendem os jornalistas estrangeiros é deixá-los pedir Pepsi num restaurante. Os bagdalis pronunciam "Bebsi". Então, quando ouvem alguém falando "Pepsi", entendem "Tepsi", que é um ensopado de carneiro com frango. Pelo menos uma vez em sua visita a Bagdá o ocidental pede um refrigerante e recebe uma refeição.

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Nunca mostre a sola de seu sapato a um iraquiano quando se sentar. Assim, evite cruzar as pernas. Eles acreditam que quem faz isso é rude e quer se exibir.

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Além disso, o uso da mão esquerda é vedado na maior parte das situações: ao cumprimentar alguém, ao pegar e oferecer comidas e bebidas, ao apontar algo ou uma pessoa. A discriminação canhota se explica pela religião. Segundo o Corão, o livro sagrado do islamismo, o lado direito do corpo é o de Deus e das coisas puras, e o lado esquerdo, do mal e das coisas impuras."

Sérgio Dávila é enviado especial da Folha ao Iraque

Juca Varella, fotógrafo, é enviado especial da Folha ao Iraque


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