Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Gigantes da tecnologia querem neutralidade da rede em benefício próprio

O setor de tecnologia vem sendo a força motora dos mercados mundiais, este ano. Agora, também parece estar impulsionando fusões, aquisições e decisões regulatórias.

Considere o acordo sob o qual a Disney pagará US$ 66 bilhões para adquirir ativos da 21st Century Fox, ou a oferta da AT&T pela Time Warner, ambas reações ao poder da Netflix e da Amazon. Ou a aquisição da Aetna pela CVS, cujo objetivo é combater o crescimento da Amazon no mercado de medicamentos e o provável ingresso do Google no ramo da saúde.

Considere também a decisão da Comissão Federal de Comunicações (FCC) dos Estados Unidos de revogar as regras de "neutralidade da rede", o princípio de que os provedores de acesso à internet devem tratar igualmente todo o tráfico online, na semana passada. Embora o presidente da FCC, Ajit Pai, antigo advogado da Verizon, diga que o objetivo da medida é voltar a uma regulamentação "leve", ela também pretende mudar o balanço de poder entre o setor de tecnologia e o de telecomunicações. E o faz ao permitir que os maiores provedores de acesso à internet, como AT&T, Verizon, Sprint e T-Mobile, cobrem das empresas de tecnologia, dotadas de amplas reservas de caixa, para colocar o tráfego dirigido a elas na frente da fila.

Tudo isso é prova do imenso poder do grupo de empresas conhecido pelo apelido Fang —Facebook, Amazon, Netflix e Google—, que agora domina não só os negócios digitais mas toda a economia. Hoje, 80% do patrimônio empresarial reside em apenas 10% das empresas, ricas em propriedade intelectual, e as companhias que operam as maiores plataformas de tecnologia são as mais ricas, de acordo com o McKinsey Global Institute. Esse poder cresceu com tamanha rapidez, e mudou tanto, que está forçando uma reconsideração fundamental de toda espécie de coisa, das políticas de defesa da competição às regras que governaram a internet por mais de 20 anos. Também está forçando tanto progressistas quanto conservadores a revisar desconfortavelmente suas posições políticas tradicionais.

Um exemplo é a neutralidade da rede. O termo foi cunhado no começo dos anos 2000 pelo acadêmico Tim Wu, autor de "The Attention Merchants", e veio a ser compreendido como resumo da ideia de que todo mundo —ricos e pobres, startups e conglomerados multinacionais— deveria poder usar a internet como um campo neutro de competição.

Os progressistas dos Estados Unidos apoiavam a ideia por motivos de equidade social. Mas alguns conservadores, bem como alguns representantes das grandes empresas, argumentavam que ela representa uma distorção regulatória que impede os provedores de acesso de monetizar devidamente o seu investimento na infraestrutura de banda larga. O argumento é justo. Afinal, as empresas de telecomunicações que constroem a rodovia digital do século 21 têm margens de lucro da ordem de um dígito, enquanto empresas como o Google e o Facebook —que simplesmente ficam esperando que alguém suba um vídeo de um gato e vendem publicidade direcionada com muita precisão para acompanhá-lo— apresentam margens de lucro muito mais elevadas.

As grandes empresas de plataformas tecnológicas, que foram as maiores beneficiárias da neutralidade da rede no mundo dos negócios, até o momento vêm trabalhando os argumentos sociais e econômicos em benefício próprio. Elas e muitos outros defensores da neutralidade da rede —entre os quais startups que temem ser alijadas da concorrência por rivais com recursos maiores capazes de pagar por acesso preferencial aos seus dados— argumentam que aumentar o poder dos provedores de acesso sufocaria a inovação na internet e penalizaria indevidamente as pequenas empresas.

Mas há diversos críticos que afirmam que os Fang mesmos representam risco maior para a inovação do que as empresas de telecomunicações, em grande parte por conta dos efeitos de rede que fazem deles monopólios naturais. Os dados são a moeda da era digital, e o valor deles cresce exponencialmente. Isso também permite que os maiores protagonistas se tornem mais dominantes, e mais capazes de esmagar a concorrência de inúmeras maneiras —seja adquirindo qualquer empresa que ameace seu negócio central, seja por "violação eficiente" da propriedade intelectual dos competidores.

Outros setores se queixam de que os Fang ainda desfrutam de isenções regulatórias injustas graças a lacunas na seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações, de 1996. Poder econômico gera poder político, e é por isso que os Fang batalharam muito, e até agora com sucesso, em Washington contra esforços para sanar essas lacunas e outras medidas que tornariam seus modelos de negócios mais justos e transparentes.

Tudo isso serve como lembrete de que muitas das batalhas quanto a monopólios que estão sendo travadas hoje em dia não são confrontos entre Davi e Golias, mas sim confrontos entre Golias e Golias. É difícil argumentar que uma fusão vertical entre empresas de conteúdo e de infraestrutura, como a Time Warner e a AT&T, beneficia a competição, ou as pessoas comuns, mesmo que você aceite a ideia de que o objetivo da política antitruste deveria ser o "bem estar do consumidor". (É bom esclarecer que não acredito nisso: é preciso pensar também na criação de negócios e nos trabalhadores.) Mas parece incoerente bloquear a AT&T sem fazer coisa alguma quanto aos Fang.

O que parece escapar a qualquer atenção nesse debate é o consumidor norte-americano. Mesmo que os Estados Unidos tivessem um governo que se incomoda com a aplicação das leis antitruste —para além da batalha política do presidente Donald Trump com o objetivo de forçar a Time Warner a vender a rede de notícias CNN, que ele vê como inimiga—, políticas baseadas em modelos antiquados, que não tratam dos problemas da era digital, não criarão um espaço neutro de concorrência.

Enquanto isso, a revogação da neutralidade da rede não vai prejudicar de verdade as empresas do grupo Fang —elas podem pagar facilmente quaisquer taxas que os provedores de acesso decidam impor. Mas a decisão pode separar os consumidores em classe econômica e primeira classe. O que necessitamos é de aplicação igual e coerente das regras de competição. E isso provavelmente requererá regras novas.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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