Folha de S. Paulo


O bitcoin não substituiu o dinheiro, mas os investidores nem ligam

Benoit Tessier/REUTERS
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Bitcoins

Quando o bitcoin começou a ganhar espaço na consciência do público, alguns anos atrás, algumas empresas grandes, como a Dell e a Expedia, anunciaram que começariam a aceitar pagamentos na moeda virtual. Mas pouca gente se interessou.

Esse fracasso não incomodou muitas das pessoas que estão comprando bitcoins nos últimos meses, levando os preços a novos recordes –a cotação chegou a mais de US$ 13 mil por bitcoin nesta quarta-feira (6).

Esses investidores não estão usando a moeda virtual para comprar computadores ou reservar viagens. Em lugar disso, compram bitcoins e os retêm, como se estivessem negociando com ouro virtual, uma nova forma de armazenar dinheiro longe do controle de qualquer governo ou empresa.

"Sempre fui cético quanto a concorrer diretamente com, e buscar substituir, outras formas de pagamento", disse Steve Lee, por muito tempo empregado do Google, que está investindo em moedas virtuais, em San Francisco. "Hoje, aquilo em que o bitcoin é excelente, e um problema que ele resolveu, é o de funcionar como banco pessoal para cada investidor".

A discussão sobre o que o bitcoin faz e não faz bem pode parecer apenas um debate semântico entre nerds da computação, com pouca relevância para o mundo externo.

Mas os desacordos no seio da comunidade do bitcoin estão sendo observados de perto pelos dirigentes de bancos centrais e por executivos do setor financeiro. Os gigantes das finanças estão monitorando os sucessos e fracassos do bitcoin e realizando experimentos com seus conceitos tecnológicos, como o livro-razão para registro de transações com moedas virtuais, conhecido como blockchain.

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Muitas grandes instituições disseram que esperam integrar o blockchain ao seus projetos para a futura infraestrutura financeira mundial, e esses projetos provavelmente serão influenciados por aquilo que for aprendido com o bitcoin.

"As pessoas estão estudando essa área em parte porque veem os primórdios de um novo sistema financeiro –um sistema financeiro com estrutura muito diferente daquele que temos agora", disse Neha Narula, diretora da Iniciativa de Moedas Digitais do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Lee e outros esperam que o bitcoin possa vir a ser usado para pagamentos, um dia, mas acreditam que isso provavelmente acontecerá por meio de software criado com base no bitcoin, e não por meio da rede do bitcoin em si.

Nem todo mundo concorda com a posição de Lee. Muitos empreendedores e acadêmicos acreditam que as moedas virtuais só ganharão empuxo se puderem ser transferidas de forma rápida e barata. O desacordo deu origem a diversos concorrentes do bitcoin –entre os quais uma moeda virtual separada conhecida como bitcoin cash.

Mas a comunidade que se desenvolveu em torno do bitcoin original vem demonstrando unidade cada vez maior em torno de uma visão que tem por foco as qualidades semelhantes às do ouro que a moeda digital apresenta, e não sua capacidade para concorrer com serviços de remessas de pagamentos como o PayPal.

"O motivo para que as pessoas tenham bitcoins é que eles servem como excelente repositório de valor, talvez o melhor que já existiu", disse Jimmy Song, desenvolvedor de software que contribuiu para a criação do bitcoin. "Você pode enviar dinheiro para a África em 10 minutos, mas essa não é a principal razão para que as pessoas comprem a moeda virtual".

Quando o bitcoin foi introduzido, em 2008, o título do estudo escrito por seu criador, o misterioso Satoshi Nakamoto, definia a moeda como "um sistema de dinheiro eletrônico".

O software do bitcoin criava uma rede descentralizada de computadores a que qualquer pessoa com acesso à Internet poderia aderir, o que facilitaria a transferência de bitcoins de endereço a endereço. E o bitcoin atraiu inicialmente a atenção do público devido ao seu uso como dinheiro digital anônimo em sites de mercado negro como o Silk Road.

Mas o número de pessoas que usavam o bitcoin para comprar coisas sempre foi pequeno, se comparado ao número de especuladores que compravam a moeda por conta de sua escassez. Isso era algo que o software original do bitcoin também encorajava, ao estipular um limite máximo de 21 milhões para o número de bitcoins que seriam emitidos.

O valor cada vez mais alto do bitcoin o torna ainda menos atraente como forma de pagar por coisas. A maioria das pessoas não quer pagar suas compras com uma moeda que pode estar valendo duas vezes mais na semana que vem.

Também existem limites para a capacidade do sistema do bitcoin. Uma regra inscrita no software do bitcoin estabelece que a rede só pode processar cinco transações por segundo –ante as 25 mil transações que a Visa processa por segundo.

Esse gargalo gerou uma briga entre pessoas que desejam usar o bitcoin para propósitos distintos. Muitos dos seguidores iniciais da moeda acreditavam que o sistema poderia ser expandido para acomodar maior número de transações sem com isso sacrificar seu status como commodity virtual. Esse grupo propunha uma mudança nas regras do bitcoin que teria dobrado a capacidade do sistema, em novembro.

Mas Lee e outros investidores e programadores se preocupavam com a possibilidade de que uma expansão rápida da rede do bitcoin ameaçasse a independência da moeda virtual.

"Para que uma moeda seja mundial, não pode haver controle por um país ou um banco, e nem mesmo por um grupo de países ou de bancos", disse Lee. "Se a descentralização for ameaçada, a maior parte das coisas se despedaça, no bitcoin".

A descentralização resulta da concepção incomum do bitcoin, que permite que usuários mantenham e monitorem registros sobre todas as transações envolvendo bitcoins, sem qualquer autoridade central.

Se o número de transações aumentar rapidamente, acreditavam muitos dos proponentes do bitcoin, só grandes empresas seriam capaz de manter registros sobre elas. Eles acreditavam também que a concepção do bitcoin não se enquadrava bem a concorrer com o PayPal e a Visa, porque cada transação precisa ser registrada por milhares de computadores espalhados pelo mundo.

"Quem quer que tenha contemplado o bitcoin e pensado em 'sistema de pagamentos barato' não deve ter muita instrução em ciências da computação", disse Ben Davenport, cofundador da BitGo, uma startup do ramo de moedas virtuais, e oponente da duplicação da capacidade da rede.

Os argumentos dessa ala prevaleceram, e no começo de novembro o plano de dobrar a capacidade da rede foi abandonado.

De lá para cá, pessoas interessadas em usar moedas virtuais para realizar pagamentos começaram a recorrer a concorrentes do bitcoin. Stephen Pair, presidente-executivo da BitPay, uma startup que ajuda empresas a realizar pagamentos em moedas virtuais, disse que seus clientes estavam planejando ir além do bitcoin.

"Se as pessoas não puderem comerciar, é difícil imaginar por que desejariam armazenar seu dinheiro em forma de bitcoin, para começar", disse Pair.

Ele acredita que seja uma irresponsabilidade sugerir que uma moeda virtual que existe há menos de uma década poderia desafiar o ouro. O conceito do bitcoin como bom repositório de dinheiro, ele acrescentou, será menos convincente quando o preço do bitcoin cair, como já fez no passado.

Mas não existe escassez de investidores que votaram com suas carteiras em favor da abordagem mais cautelosa do bitcoin original.

O preço de um bitcoin subiu em mais de 70% nos últimos 30 dias, e é mais de 10 vezes superior ao de uma onça troy (31,1 gramas) de ouro.

"Não creio que a maioria das pessoas veja o bitcoin como algo a ser comprado porque oferecerá os recursos X, Y e Z no futuro", disse Song. "As pessoas em geral investem porque acreditam que ele é uma boa forma de armazenar valor".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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