Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Os algoritmos que seduzem nossas crianças

Reprodução/Video/Ryan ToysReview
Squawk Chicken Egg Game for kids and Kinder Surprise toys for winner
Reprodução de vídeo do canal Ryan ToysReview, no YouTube

Nesta temporada de festas, um menino de sete anos chamado Ryan pode ser o responsável pela lista de Natal de seus filhos. Empilhando brinquedos até formar uma verdadeira montanha de consumismo, em tamanho infantil, ele se tornou sensação no YouTube e atraiu 9,7 milhões de seguidores para o canal Ryan ToysReview.

Criada por seus pais antes de ele fazer quatro anos de idade, a conta de Ryan desfruta de um dos maiores números de seguidores no YouTube, comparável ao de influencers populares como Zoella. Ryan agora também tem um app para smartphones Android e assinou um contrato com a Pocket Watch, uma empresa de entretenimento para crianças, que lançará livros e mercadorias com a marca dele.

Em seu vídeo mais famoso, assistido quase 800 milhões de vezes, a mãe entra no quarto para acordar Ryan, que dorme em uma cama em formato de carro vermelho, da linha de mercadorias do filme "Cars", da Disney.

Ela lhe dá um ovo do tamanho de uma bola de exercícios, também da marca Cars. Saindo debaixo de um cobertor, com estampa da linha Cars, ele apanha um martelo inflável (da linha Cars), quebra o ovo com ele e revela os brinquedos que estão lá dentro.Por trás da câmera, sua mãe comemora com gritinhos, e comenta.

Vídeo mais famoso de Ryan no YouTube

A Ryan ToysReview é só um exemplo da nova linha infantil do YouTube –há outros canais do tipo, como o EvanTubeHD e o Hayley's Magical Playhouse. Ryan mesmo cria a maioria dos memes, que você só conhecerá se tiver um pequeno usuário do YouTube em casa: o "ovo surpresa", com uma grande revelação, a piada sobre a criança má/bebê mau, ou a família dedos, no qual ele finge que seus dedos são pessoas.

Esses memes ajudam as crianças a descobrir o canal. E basta que elas assistam um vídeo sobre o ovo surpresa para que o algoritmo do YouTube sugira outros, na barra lateral. Uma busca por "surprise egg" no serviço de vídeo dá mais de 10 milhões de retornos.

O setor de tecnologia está sob escrutínio por conta do modo pelo qual seus algoritmos manipulam os adultos, mas pouca atenção vem sendo dedicada à forma pela qual os algoritmos seduzem as crianças, muito mais suscetíveis que seus pais. As crianças em muitos casos não contam com o autocontrole ou mesmo com a capacidade de mudar de canal.

O canal de Ryan é inocente, mas os algoritmos que o servem encorajam vídeos que parecem quase automatizados, nos quais personagens favoritos, termos de busca e memes são combinados de maneira arbitrária, concebida para manipular os ranking do YouTube e não para ensinar por meio de histórias coerentes.

PREOCUPAÇÃO

O mais preocupante é que alguns desses vídeos portam conteúdo adulto, disfarçado com os traços característicos de um programa infantil. O jornalista e artista britânico James Bridle recentemente mergulhou no mundo do conteúdo dirigido a crianças no YouTube. Uma descoberta perturbadora foi a de vídeos que mostram personagens conhecidos cometendo atos de violência - em um deles, uma música alegre acompanha imagens de palhaços surrando o Homem-Aranha e o Hulk; a morte se aproxima sorrateiramente da Mulher-Maravilha, que está sentada em um sofá.

Bridle ficou horrorizado, e acusou o YouTube e o Google de cumplicidade com esse sistema. "A arquitetura que eles criaram para extrair a máxima receita dos vídeos online está sendo usurpada por pessoas desconhecidas, que praticam abusos contra as crianças, talvez não deliberadamente mas ainda assim em escala maciça".

Outros vídeos mostram pessoas usando seus filhos como adereços. O YouTube recentemente removeu o canal ToyFreaks, no qual um pai postava vídeos de suas filhas berrando de medo e sendo alimentadas à força, mas não antes que ele atingisse oito milhões de seguidores.

Na semana passada, o BuzzFeed encontrou uma série de vídeos que mostravam crianças sendo colocadas em máquinas de lavar ou sendo falsamente torturadas por homens com máscaras de palhaço.

O YouTube afirma que tomou medidas para enfrentar esses desafios, recentemente, entre as quais garantir que os criadores que usam personagens de entretenimento familiar em cenários que envolvem comportamento inapropriado não possam ganhar dinheiro com seus vídeos.

A empresa encoraja os pais a só permitir que os filhos assistam por meio do app YouTube Kids, que tem mais regras e controles. Mas o YouTube Kids tampouco conta com uma equipe humana de revisão, e depende de os pais denunciaram vídeos inapropriados, para removê-los.

O consumismo ao estilo de Ryan pode incomodar as pessoas que sonham com um Natal no qual as crianças leiam livros e brinquem com trenzinhos. Mas comparado aos vídeos descobertos por Bridle, o que o menino faz é só uma expressão moderna do poder que as vontades dos filhos sempre tiveram sobre os pais.

O efeito que o algoritmo do YouTube pode ter sobre o que mais as crianças assistem é muito mais sinistro.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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