Folha de S. Paulo


Montadoras disputam com teles na Europa como conectar carros entre si

A indústria automobilística europeia está envolvida em um debate feroz que dará forma ao futuro de todos os carros vendidos na região: como fazer com que veículos conectados à internet "conversem" uns com os outros enquanto percorrem ruas e estradas.

O debate se centra em duas tecnologias concorrentes que separam as montadoras de automóveis e as operadoras de telecomunicações do continente em dois amplos campos —e até despertou oposição entre dois ramos da Comissão Europeia.

"Isso pode se transformar em uma guerra de trincheiras", disse uma pessoa informada sobre a situação, que vem esquentando cada vez mais nos últimos meses.

As montadoras em geral favorecem uma tecnologia que empregue uma porção específica do espectro, ou seja das frequências de rádio disponíveis, para comunicação entre carros. Esse sistema de veículo a veículo (V2V) estará pronto para operar assim que o equipamento de rede for produzido, o que poderia acontecer relativamente rápido.

Essa camada de tecnologia permitiria que carros se movimentassem muito mais perto uns dos outros nas estradas, e sincronizaria freadas de forma a evitar acidentes.

As empresas de telecomunicações, em contraste, apoiam um sistema de telefonia celular aberto e de longo alcance, que permitiria que os carros compartilhassem das frequências usadas pelos sinais dos celulares. O sistema demoraria mais a ser desenvolvido do que o V2V, porque teria de esperar pelo 5G, a nova geração de tecnologia de comunicação móvel, que só deve ser lançada em escala mundial em 2020.

"É como a disputa entre VHS e Betamax", disse outra fonte envolvida nas negociações, em referência à batalha entre tecnologias de vídeo nos anos 80, que terminou vencida pelo VHS, que se tornou o sistema padrão de gravação e reprodução de filmes e séries de TV.

O perigo de uma batalha prolongada quanto ao padrão de tecnologia que deveria ser usado para conectar carros é que isso poderia causar atraso no desenvolvimento dos veículos autoguiados.

A Comissão Europeia deve anunciar sua decisão formal sobre o tipo de tecnologia que ela prefere no ano que vem, e algumas grandes empresas de automóveis e telecomunicações, como a Vodafone e a BMW apoiam uma posição "tecnologicamente neutra", que permitiria o desenvolvimento de ambos os sistemas.

No entanto, isso não impediu os fabricantes de automóveis e as operadoras de telecomunicação de discutir quanto aos sistemas que preferem.

Dezenas de milhões de euros, o que inclui verbas públicas, já foram investidos no desenvolvimento da tecnologia sem fio de curto alcance V2V, especialmente nos Estados Unidos, onde ela já foi amplamente testada.

Diversas montadoras, como a Renault, Toyota, Hyundai e Volkswagen, além de alguns fabricantes de autopeças, favorecem o uso da tecnologia V2V, que também conta com o apoio de diversos países membros da União Europeia, entre os quais França, Suécia e Holanda, de acordo com três pessoas familiarizadas com a situação.

A Volkswagen, que no passado fabricou mais carros do que qualquer outra empresa, no total mundial, anunciou que levará adiante a instalação dessa tecnologia em alguns de seus modelos, a partir de 2019.

Os fabricantes de caminhões também apoiam a opção WiFi V2V, por conta do papel que ela desempenha em um método conhecido como "pelotões", que é um sistema de autocondução parcial por meio do qual um comboio de caminhões sincroniza suas freadas a fim de permitir espaço muito menor entre veículos na estrada, o que baixa dramaticamente o consumo de combustível ao reduzir a resistência do ar que cada veículo enfrenta.

Os proponentes do sistema V2V apontam para as falhas do sistema de telefonia celular, que precisa estar conectado a uma rede de telecomunicações, o que o torna inadequado para ações que requerem resposta instantânea do veículo.

"Se você precisa brecar, é melhor que o saiba em um milissegundo", diz uma pessoa conhecedora da tecnologia. "Um sistema de frenagem que tenha problemas de buffering não é admissível".

O setor de telecomunicações, no entanto, afirma que um sistema baseado em telefonia celular tem o potencial de ser mais seguro, e o define como uma "bolha de segurança" de mil metros, em referência ao seu alcance maior. Isso oferece grandes vantagens sobre o V2V, insistem os defensores da tecnologia.

Os proponentes do sistema de telefonia móvel também apontam para o fato de que, embora um sistema de alcance mais curto possa ser capaz de detectar um carro que freou subitamente logo adiante, um sistema de alcance mais longo poderia determinar que um incidente aconteceu bastante à frente na estrada, e reagir com antecedência.

Algumas montadoras, entre as quais a BMW e a Mercedes-Benz, do grupo Daimler, enfatizam que o V2V, já testado, poderia ser colocado em operação mais rápido do que o sistema de telefonia celular.;

Em contraste, os defensores do sistema de telefonia celular afirmam que ele oferecerá uma maneira muito mais barata e efetiva de conectar carros no futuro, mesmo que ela esteja em estágio inferior de desenvolvimento agora.

O argumento mais forte em favor do sistema de telefonia celular, de acordo com Tom Rebbeck, analista da Analysys Mason, é que ele é capaz de melhorar o sistema de trânsito de modo mais geral, porque seu alcance mais longo poderá ser usado para administrar semáforos e reduzir congestionamentos em toda uma cidade, em lugar de ser usado apenas para veículos individuais.

Em essência, com o sistema de telefonia celular, chips poderão ser instalados em redes rodoviárias e semáforos, para que os carros possam ser comunicar com o mundo ao redor deles em distâncias muito maiores. Isso permitirá que "vejam" condições que não seria possível detectar com câmeras ou sensores tradicionais.

A GSMA, organização setorial da telefonia móvel, afirmou que os chips em desenvolvimento para carro autoguiados representam "o portal para a era 5G", levando a tecnologia adiante da era 4G atual, que no momento mantém 23 milhões de carros conectados nas vias públicas europeias.

A GSMA disse que a proposta de adoção do padrão V2V "prejudicaria seriamente" o uso da tecnologia mais avançada e "poderia levar à adoção de uma tecnologia já envelhecida, que não é à prova do futuro e é posta em questão por grandes fabricantes automotivos".

No entanto, pessoas de ambos os campos, nos automóveis e telecomunicações, veem benefício em que as autoridades regulatórias adotem uma postura "tecnologicamente neutra".

Consequentemente, empresas de telecomunicações como a Vodafone e a Telefónica se alinharam com grupos automobilísticos como Audi, BMW, Daimler, Ford e Jaguar Land Rover para para pressionar por essa abordagem "tecnologicamente neutra" quanto à conectividade, formando a 5G Automotive Association, presidida pela Audi.

Um desfecho provável é que todos os sistemas de comunicação para automóveis venham a ser interoperáveis, o que requereria que companhias desenvolvessem sistemas baseados na tecnologia 5G, como a versão de alcance mais longo da telefonia móvel, de forma a que eles pudessem interagir com a tecnologia V2V mais antiga.

No entanto, isso geraria acúmulo de custos, porque os dois sistemas podem ter de ser incluídos no mesmo carro a fim de cumprir as leis e, de acordo com engenheiros que estão trabalhando em sistemas mais novos, isso retardaria o desenvolvimento de projetos.

Um debate prolongado sobre a questão na Europa poderia deixar a União Europeia para trás dos Estados Unidos, onde muito dinheiro foi investido no desenvolvimento do V2V e na criação de um anteprojeto de regulamentação para veículos autoguiados e conectados.

Philip Pfeffer, sócio do escritório de advocacia Herbet Smith Freehills, disse que "se os Estados Unidos determinarem o sistema, há o perigo de que a Europa se veja forçada a segui-lo".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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