Folha de S. Paulo


Reação a assédio sexual no Vale do Silício cresce após denúncias

Justin Chin/Bloomberg/NYT
Dave McClure, the founder of 500 Startups, resigned on Monday. Credit Justin Chin/Bloomberg
Dave McClure, fundador da 500 Startups

A reação quanto ao assédio sexual no segmento de start-ups de tecnologia cresceu ainda mais nesta segunda-feira (3), com a renúncia de um proeminente investidor do Vale do Silício que declarou ter sido "asqueroso", e com o surgimento de novas denúncias de mulheres sobre experiências de assédio que sofreram.

Dave McClure, fundador da incubadora de empresas iniciantes 500 Startups, anunciou que estava deixando a companhia na segunda, depois de uma reportagem do "New York Times" na semana passada que revelou que ele havia assediado uma mulher candidata a emprego na companhia. McClure pediu desculpas pelo seu comportamento em um post de blog publicado no fim de semana intitulado "fui asqueroso, e peço desculpas". Outra sócia da 500 Startups, Elizabeth Yin, também deixou a empresa no fim de semana, afirmando que o motivo havia sido a descoberta pela companhia de ainda outro episódio de assédio sexual envolvendo McClure.

Diversos outros investidores em start-ups também pediram desculpas por não terem feito o suficiente para prevenir o assédio sexual, e alguns deles, em diversos lugares do mundo, parecem ter começado a desenvolver estratégias para evitar esse tipo de episódio.

A New England Venture Capital Association, uma associação setorial de fundos de capital para empreendimentos, na semana passada convidou seus integrantes a assinar uma declaração que condena a discriminação e o assédio sexual. Na Austrália, empreendedores do segmento também divulgaram um comunicado no qual condenam esse tipo de comportamento.

E empreendedoras encorajadas pelo apoio recebido vêm mostrando mais disposição de revelar suas histórias, nos últimos dias.

Sasha Maslov/The New York Times
From left: Claire Humphreys, Rachel Renock and Kristen Ablamsky, of the start-up site Wethos, in New York, June 30, 2017. More than two dozen women in the tech start-up industry spoke to The New York Times about being sexually harassed by investors and mentors. Renock said they received sexist comments while seeking financing. (Sasha Maslov/The New York Times) ORG XMIT: XNYT182 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
A partir da esq., Claire Humphreys, Rachel Rennck e Kristen Ablamsky, sócias da comunidade Wethos

"As mulheres agora têm mais poder que nunca para não tolerar esse tipo de coisa", disse Sarah Kunst, presidente-executiva da start-up de fitness Proday, que foi alvo de propostas sexuais de McClure depois que os dois começaram a conversar sobre a possibilidade de ela trabalhar na 500 Startups. Kunst disse que agora há "incontáveis discussões" entre as mulheres sobre falar publicamente de suas experiências, e sobre como pôr fim a esse tipo de comportamento.

A indignação foi causada por uma série de revelações sobre a maneira pela qual os profissionais de capital para empreendimentos vêm tratando as empreendedoras ao longo dos anos, uma questão que no passado costumava ser varrida para baixo do tapete. As revelações ganharam ímpeto depois da implosão de uma pequena empresa de capital para empreendimentos, a Binary Capital, no mês passado, quando que um de seus sócios, Justin Caldbeck, pediu desculpas públicas às mulheres depois que diversas delas falaram publicamente sobre seu comportamento. O "New York Times" também conversou com mais de duas dúzias de empreendedoras que descreveram propostas sexuais indesejadas, toques indevidos e comentários sexistas de investidores.

HISTÓRICO

Há anos, os segmentos de start-ups e de capital para empreendimentos —este último predominantemente masculino— vinham escapando impunes a críticas quanto ao seu comportamento porque criaram imensa riqueza ao produzir empresas de sucesso como Facebook, Snap e Uber. A reação negativa atual sugere que esses sucessos já não bastam para desculpar a atitude de indiferença quanto às regras que existe da parte de alguns investidores e empreendedores.

Agora que mais mulheres se dispuseram a falar abertamente sobre assédio sexual e discriminação, Kate Mitchell, fundadora da Scale Venture Partners, uma companhia de capital para empreendimentos do Vale do Silício, disse que o setor estava diante de um "ponto de inflexão".

"O fato de que esse comportamento seja generalizado e que aquilo que sabemos a respeito pareça ser a ponta do iceberg nos fez compreender a dificuldade e a realidade de nossos desafio", disse Mitchell. "As ações precisam ser mais agressivas e mais abrangentes do que eu acreditava anteriormente".

Mas ainda que o movimento de combate ao assédio pareça estar ganhando ímpeto, algumas empresas de capital para empreendimentos aparentemente estão se queixando, em foro privado, sobre a necessidade de enfrentar o problema, de acordo com alguns investidores.

"Alguns homens acreditam que essa conversa tenha se tornado uma caça às bruxas", disse Aileen Lee, fundadora da Cowboy Ventures. "Eles querem saber quando as pessoas deixarão de ser expostas."

A atitude revela uma falta de compreensão quanto à questão, disseram algumas empreendedoras. Ainda que "tenhamos aceitado que é muito importante que um chefe não tente seduzir uma pessoa que se reporta a ele, muita gente ainda não compreende que a mesma dinâmica de poder está em jogo quando fundadoras buscam formar relacionamentos profissionais ou arrecadar dinheiro", disse Kathryn Minshew, fundadora da Muse, uma empresa que ajuda mulheres a encontrar empregos.

Anos atrás, Minshew contou à revista "Wired" sobre o tratamento que recebeu no ecossistema das start-ups. Na semana passada, ela falou ao "New York Times" sobre o assédio que sofreu de investidores homens —cujos nomes não revelou— em diversas ocasiões.

Em uma dessas ocasiões, ela foi apresentada a um investidor em uma conferência e marcou uma hora para discutir sua empresa. No dia da reunião, o assistente do investidor ligou para avisar que o horário da reunião teria de ser transferido para a noite. Durante a reunião, o investidor chegou muito perto de Minshew e a abraçou. Em outra ocasião, um investidor sugeriu que os dois dormissem juntos depois que sua empresa assinou um acordo de investimento na companhia de Minshew, mas antes que o dinheiro estivesse no banco. Ela recusou o dinheiro da empresa dele, depois do episódio, o que colocou em risco o processo de capitalização de sua companhia.

"Parece que a aceitação e tolerância do setor a esse tipo de comportamento está mudando", disse Minshew. "Eu realmente aprecio a maneira pela qual as pessoas do setor estão se erguendo para dizer que não, isso não é aceitável".

Na 500 Startups, a demissão de McClure não foi causada apenas pelas revelações de Kunst, mas por um relatório interno separado divulgado em abril, que revelava que ele havia agredido sexualmente uma funcionária da companhia, segundo a carta de demissão de Yin, a sócia da empresa que se afastou no fim de semana. O "New York Times" obteve uma cópia de sua carta.

A acusação de agressão sexual levou o comando da 500 Startups a remover McClure das operações cotidianas da empresa em maio, de acordo com a carta de Yin. Mas os funcionários foram informados de que a mudança havia acontecido devido a questões de crescimento, ela afirmou em sua carta. McClure continuou ativo nos canais de comunicação da empresa, influenciando decisões, de acordo com gravações de mensagens vistas pelo "New York Times".

Depois da reportagem do jornal sobre McClure na semana passada, ele escreveu, no canal de Slack da empresa, que "nunca ataquei pessoa alguma (que eu saiba)". Aman Verjee, vice-presidente de operações da 500 Startups, também disse a colegas e funcionários que não havia surgido qualquer "constatação formal de assédio", e que não existiam "queixas legais contra a 500 ou Dave".

Os investidores na 500 Startups não foram alertados sobre a mudança no comando da incubadora até depois da publicação da reportagem do "New York Times" que continha as informações sobre McClure e Kunst, de acordo com Brad Feld, um dos investidores na empresa. A empresa também declarou aos investidores na sexta-feira (30), em um e-mail do qual o "New York Times" obteve cópia, que McClure "continuará a contribuir significativamente para o futuro sucesso da 500".

IMPERDOÁVEL E ERRADO

No sábado (1º), McClure postou seu pedido público de desculpas: "Meu comportamento foi imperdoável e errado", ele escreveu.

Mas naquele dia, os líderes da empresa tiveram uma conversa acalorada ao telefone na qual McClure admitiu ter iniciado contato físico indesejado com a funcionária, cujo nome não foi revelado, de acordo com a carta de Yin.

Yin se recusou a comentar. McClure não respondeu de imediato a um pedido de comentário. O site de notícias Axios foi o primeiro a postar informações sobre a carta de Yin.

Em comunicado divulgado na segunda, a 500 Startups afirmou ter sido informada em abril das "acusações de comportamento inapropriado por parte de Dave McClure", e que havia iniciado uma investigação interna imediatamente, que levou ao afastamento de McClure de suas funções executivas. "Devido à delicadeza das questões de pessoal e em respeito à privacidade de todos os envolvidos, mantivemos a investigação sob sigilo", a empresa declarou.

Em sua carta, Yin escreveu que "não posso apoiar a falta de transparência e a propagação de desinformação no nível executivo desta empresa".

Mais revelações sobre McClure surgiram na segunda-feira. Cheryl Yeo, uma empreendedora da Malásia, postou uma mensagem sobre ter recebido propostas sexuais de McClure, e sobre ter sido agredida sexualmente por ele em 2014.

"Se alguém usa seu poder como investidor de capital para empreendimentos e faz avanços físicos e sexuais repetidos contra mulheres, em um contexto profissional, isso vai além de ser asqueroso", ela escreveu.

Em resposta, a 500 Startups escreveu que "apreciamos o fato de que Cheryl tenha se pronunciado, e compreendemos o quanto foi perturbador e doloroso para ela passar por essa experiência, e ter a coragem de revelá-la".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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