Folha de S. Paulo


Disputa de uma década com a Shell expõe dificuldades do fisco em SP

Murad Sezer/Reuters
Disputa de uma década com a Shell expõe dificuldades do fisco em SP
Disputa de uma década com a Shell expõe dificuldades do fisco em SP

Luiz Inácio Lula da Silva ainda estava no segundo ano do primeiro mandato quando a Shell recebeu a primeira notificação do governo de São Paulo. Era 2004, e a Secretaria da Fazenda questionava os valores que a multinacional, dona de uma das maiores redes de postos de combustível do país, dizia ter em créditos com o fisco paulista.

O governo discordava dos cálculos da Shell. No seu entendimento, eles resultaram em créditos de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) maiores do que a empresa tinha direito a receber. A Shell pediu tempo para se explicar, não se explicou e foi multada em 2006.

Desde então, Lula foi reeleito, Dilma Rousseff chegou à Presidência, foi reeleita e caiu, vieram mensalão, petrolão, delação. A Shell mudou de nome e virou Raízen. O caso segue em aberto e corre o risco de ser arquivado. A conta beira R$ 150 milhões.

O ICMS é o imposto mais importante para os Estados. Sozinho, responde por 70% da arrecadação de São Paulo. Quando o contribuinte contesta valores ou não paga, entretanto, o problema se instala. Só em 2016 foram R$ 25 bilhões inscritos na dívida ativa e R$ 3 bilhões recuperados pelo governo paulista.

Em média, contando o tempo da tramitação administrativa e o processo judicial, uma autuação fiscal leva 11 anos para ter desfecho, segundo dados do fisco de São Paulo e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

A análise do caso da Shell, que já bateu essa marca e segue sem desfecho, expõe a dificuldade do governo estadual de cobrar o que entende devido. E ajuda a entender por que o estoque de tributos reclamados pelo fisco paulista supera hoje R$ 350 bilhões.

QUE SHELL?

Quatro anos após a autuação, o caso saiu da esfera administrativa. Sem conseguir recolher o dinheiro, o fisco recorreu a uma ação judicial de cobrança. Em 2010, um oficial de Justiça foi acionado, mas não cumpriu a missão. O motivo? Não conseguiu localizar a multinacional.

A Justiça não sabia onde estava a Shell, mas a Shell sabia como acionar a Justiça e logo conseguiu parar a ação, entrando com processo para anular a multa recebida.

Em 2014, veio a primeira decisão contra a empresa. A juíza Cynthia Thomé, da 6ª Vara da Fazenda Pública, entendeu que a empresa não só deveria pagar o que a Secretaria da Fazenda cobrava como pedira sucessivos prazos na tentativa de fugir da punição.

Na avaliação da magistrada, fora uma "manobra" para se livrar da cobrança —depois de um tempo, se não houver a autuação, o fisco não pode mais questionar o contribuinte. A Shell recorreu da decisão e conseguiu manter a ação de cobrança parada por mais dois anos.

Em 2016, os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo entenderam, como Thomé, que os argumentos da Shell não deveriam prosperar. Novamente perdedora, a empresa apelou à corte e teve o pedido negado.

Em seis anos de tramitação, a Shell não conseguira convencer nenhum juiz de que seu cálculo estava correto. Com apelação vetada no TJ, o caminho estava enfim aberto para a PGE (Procuradoria-Geral do Estado) pedir que a ação de cobrança seguisse, tentando arrecadar o que o Estado questionava havia mais de uma década. Mas não houve pedido da PGE para o caso andar.

Enquanto isso, a Shell tentou novos recursos. A empresa solicitou que se aguardasse uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em um caso que versava sobre pagamento de ICMS —a corte declarara repercussão geral. O Supremo julgou-o em outubro de 2016, mas em São Paulo o caso seguiu parado.

Em março deste ano, o juiz da ação de cobrança decidiu mantê-la suspensa por ate 360 dias e arquivar o processo, se nada acontecer até lá.

OUTRO LADO

A reportagem pediu que a PGE (Procuradoria-Geral do Estado) esclarecesse por que o caso se arrastava por tanto tempo e, mesmo após sucessivas vitórias do Estado, a ação de cobrança seguia suspensa.

Primeiro, a PGE disse que o caso estava suspenso à espera de decisão do STF —o caso foi julgado no fim de 2016.

Após insistentes pedidos, a PGE afirmou que solicitara a suspensão para localizar bens da Shell e que examinava se o seguro-garantia oferecido pela empresa "há poucos dias" era suficiente.

A Raízen afirmou que apresentou seguro-garantia para cobrir os valores em discussão caso perca e que recolheu R$ 4,17 bilhões em ICMS para São Paulo no últimos 12 meses.

TREZE ANOS E CONTANDO
O fisco foi atrás da Shell por problemas no recolhimento de ICMS em 2004, mas caso ainda tramita

Jun.04
Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo notifica Shell sobre irregularidade em créditos de ICMS

Nov.06
Shell é autuada por não comprovar valores declarados ao fisco

Jul.10
Justiça determina citação da Shell

Set.10
Oficial de Justiça diz que não conseguiu localizar a empresa

Dez.10
Procuradoria do Estado pede suspensão da execução fiscal

Jan.14
Justiça julga improcedentes ações da Shell contra Fazenda em primeira instância

Jun.16
Justiça julga improcedentes ações da Shell contra Fazenda em segunda instância

Ago.16
Fazenda pede nova suspensão da execução por 180 dias

Out.16
STF julga caso sobre restituição de ICMS com repercussão geral

Mar.17
Juiz autoriza suspensão da execução fiscal por até 360 dias

ENTENDA O CASO

O que é ICMS?

É o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, o principal tributo estadual. O ICMS responde por mais de 70% da arrecadação do Estado de SP

O que a Shell fez?

A Fazenda de SP contestou em 2004 o valor que a Shell declarava ter de crédito por ter pago ICMS a mais. O fisco discordava do cálculo, entendendo que resultara num crédito maior do que a empresa tinha direito. A Shell não se explicou e foi autuada em 2006

Qual o valor devido?

O caso ainda corre na Justiça. Atualmente, a conta beira os R$ 150 milhões


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