Folha de S. Paulo


Como foram as últimas horas do presidente da Uber no comando

As horas finais de Travis Kalanick como presidente-executivo da Uber transcorreram em um quarto privado em um hotel no centro de Chicago, na terça-feira (20).

Lá, Kalanick, que havia viajado para entrevistar candidatos a postos executivos na Uber, foi apanhado de surpresa por uma visita. Matt Cohler e Peter Fenton, dois executivos de capital para empreendimentos da Benchmark, uma das maiores acionistas da Uber, apresentaram a Kalanick uma lista de exigências que incluía sua renúncia ao comando da empresa ainda naquele dia. A carta que eles entregaram ao executivo vinha de cinco dos maiores investidores na Uber, entre os quais a Benchmark e a gigante dos fundos mútuos Fidelity Investments.

Kalanick inicialmente recusou, de acordo com pessoas informadas sobre a reunião que pediram que seus nomes não fossem revelados porque os detalhes do acontecido são confidenciais. O executivo, que transformou a Uber em um gigante dos transportes em apenas oito anos, rapidamente ligou para Arianna Huffington, que faz parte do conselho da empresa, pedindo orientação. Huffington disse que as sugestões da carta mereciam consideração. Naquela tarde, Kalanick se trancou em uma sala com Cohler e Fenton para definir o melhor curso para a Uber.

Pelo final do dia, depois de horas de discussão e barganha, o curso estava claro: Kalanick concordou em renunciar à presidência executiva da Uber.

O drama empresarial que se desenrolou no hotel nada teve de súbito. Foi a culminação de meses de desgaste ao longo dos quais quase toda a base de apoio de Kalanick se voltou contra ele. Um a um, executivos, membros do conselho, investidores e até mesmo amigos se afastaram.

Isso tudo se dava enquanto enquanto a Uber se enredava em uma série aparentemente interminável de escândalos legais e éticos, de acordo com entrevistas com mais de uma dúzia de pessoas que conhecem bem a empresa, antigos funcionários, investidores e outros, que pediram que seus nomes não fossem mencionados porque não tinham autorização para falar do assunto publicamente.

Algumas dessas partes interessadas terminaram por decidir que Kalanick havia se tornado um peso para a Uber e agiram para proteger seus interesses, em detrimento dele. No final, essa perda de apoio —somada à perda recente de sua mãe, que abalou muito o executivo— reduziu seriamente a possibilidade de que Kalanick se mantivesse no comando da empresa.

Nenhum porta-voz da Uber quis comentar para o artigo —e o mesmo vale para Huffington. Fenton e Cohler não responderam de imediato a um pedido de comentário.

A RENÚNCIA E O FUTURO

Para Kalanick, a renúncia significa cair em desgraça. Ele revolucionou o setor mundial de transportes com o serviço de carros Uber e elevou o valor da empresa a quase US$ 70 bilhões, fazendo dela a mais valiosa empresa de capital fechado do planeta. Houve momentos em que foi celebrado como visionário da tecnologia.

Sua saída do comando da empresa provoca muitas questões sobre o futuro da Uber, entre as quais quem será seu próximo líder. A empresa também tem outras tarefas urgentes, como substituir os executivos de primeiro escalão que perdeu, manter seus 14 mil empregados de período integral, reformar suas práticas de trabalho e reparar o relacionamento ocasionalmente conflituoso com os seus motoristas, que são prestadores de serviços. Além disso, a Uber precisa manter seus negócios, que estão crescendo.

Por enquanto, o comando cotidiano da Uber cabe a um comitê de executivos. Encontrar um substituto para Kalanick, que agiu agressivamente para expandir a empresa, deve ser complicado, porque ele continuará presente, como acionista com direito a voto e membro do conselho.

Nesta quarta-feira (21), o conselho da Uber passou por uma nova rodada de mudanças. Bill Gurley, veterano conselheiro da empresa e executivo da Benchmark, deixará o conselho e será substituído por Cohler, de acordo com uma pessoa informada sobre a decisão. David Trujillo, sócio do grupo de capital privado TPG, se tornará conselheiro, de acordo com outras pessoas informadas sobre o assunto, substituindo seu colega David Bonderman, que renunciou ao seu posto no conselho da Uber este mês depois de fazer um comentário sexista durante uma apresentação na empresa. O TPG se recusou a comentar.

Apenas alguns meses atrás, a posição de Kalanick na Uber parecia inatacável. Ele foi um dos cofundadores da empresa em 2009 e a conduziu a mercados de todo o mundo.

Dentro da companhia, ele parecia seguro. Muitos dos principais executivos foram escolhas pessoais suas, e Kalanick havia formado o conselho com investidores como Gurley, um profissional de capital para empreendimentos da Benchmark, cujas fortunas estavam vinculadas ao sucesso da empresa. E Kalanick cimentou sua posição por ser o maior acionista individual da companhia, com influência sobre as votações quanto ao destino do grupo.

PROBLEMAS DE KALANICK

Mas o estilo franco —alguns diriam arrogante— nem sempre era bem visto por investidores, subordinados e outros.

Em fevereiro, Susan Fowler, antiga engenheira da Uber, escreveu um post em seu blog detalhando o que descreve como um histórico de assédio sexual na empresa. Isso arremessou a companhia a uma crise, abrindo as portas a outras queixas e investigações.

Naquele momento, o conselho da empresa se declarou unido em apoio a Kalanick. "O conselho confia em Travis", disse Huffington em conversa telefônica com jornalistas, em março. "O mais simples é dizer que a mudança começará de cima."

Mas nos bastidores o conselho havia começado a divergir. Gurley, que não respondeu de imediato a um pedido de comentário, passou a pedir mudanças de comando. Bonderman também começou a se desentender com Kalanick nas reuniões do conselho, porque achava que o presidente-executivo estava demorando demais a contratar profissionais para postos importantes como a vice-presidência de operações e a vice-presidência financeira.

No fim de maio, os pais de Kalanick sofreram um acidente de barco, no qual a mãe dele morreu e seu pai saiu seriamente ferido. Naquele momento, Kalanick começou a pensar em um pedido de licença.

Os principais executivos da Uber passaram a pressioná-lo para que se afastasse. Os membros de sua "Equipe A" —um círculo estreito de executivos que em geral se reportavam diretamente a Kalanick— se mostraram especialmente insatisfeitos, ameaçando sair da empresa se ele não se afastasse do posto, para reduzir a atenção da mídia aos problemas da companhia. Alguns de seus colegas já haviam começado a deixar a empresa, demitidos, em busca de outras oportunidades ou por motivos pessoais.

Na semana passada, pouco antes de a Uber divulgar alguns de seus resultados e as recomendações de uma investigação interna sobre a cultura da empresa, Kalanick cedeu. Ele anunciou que se licenciaria do posto por prazo indeterminado para trabalhar em seus problemas pessoais e construir uma "liderança de classe mundial" para a Uber.

Na verdade, Kalanick não tinha muita intenção de se manter afastado da companhia. Quase imediatamente depois de anunciar a licença, ele começou a contatar os conselheiros ao telefone, com o objetivo de derrubar Bonderman pelo comentário sexista feito durante uma reunião de trabalhadores da Uber. O desentendimento entre os dois estava se agravando, e Kalanick enviou muitos e-mails e mensagens de texto, e fez diversas ligações, aos seus aliados, para pressionar Bonderman a renunciar ao seu posto no conselho —o que ele fez, horas mais tarde.

Àquela altura, Gurley, que inicialmente foi um dos partidários de Kalanick, percebeu que as promessas de mudança na companhia não seriam suficientes se o presidente-executivo não se demitisse.

Ao longo da semana passada, Gurley e seus sócios conversaram com outros investidores da Uber no ramo de capital para empreendimentos, entre os quais a First Round Capital, Lowercase Capital e Menlo Ventures. Juntos, os investidores redigiram uma carta a Kalanick na qual lhe apresentavam quatro exigências, a principal das quais sendo sua renúncia.

Os grupos de capital para empreendimentos envolvidos se recusaram a comentar.

Gurley e o grupo de investidores enviaram Cohler e Fenton, que àquela altura tinham relacionamento melhor com Kalanick, para comunicar a notícia a ele em Chicago. Eles antecipavam que haveria briga, já que Kalanick é conhecido pela combatividade.

Por algum tempo, uma batalha parecia estar iminente. Kalanick enviou funcionários leais a ele à sede da empresa em San Francisco, para espalhar boatos junto aos investidores e tentar encontrar uma solução de compromisso em conversas privadas.

Mas depois de horas de negociações e consultas com confidentes, Kalanick decidiu dar o basta. Por volta das 23h30 da terça-feira (20), em Chicago, ele redigiu o comunicado de sua renúncia. Em seguida, concordou em permitir que o texto fosse divulgado.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: