Folha de S. Paulo


Após escândalos, presidente da Uber se licencia por tempo indeterminado

Danish Siddiqui - 19.jan.2016/Reuters
FILE PHOTO Uber CEO Travis Kalanick speaks to students during an interaction at the Indian Institute of Technology (IIT) campus in Mumbai, India, January 19, 2016. REUTERS/Danish Siddiqui/File Photo ORG XMIT: DEL08
Travis Kalanick, presidente-executivo da Uber

Travis Kalanick, presidente-executivo da Uber, decidiu se licenciar do posto por período indeterminado.

A decisão se segue à publicação de um relatório altamente crítico sobre a gestão disfuncional da companhia de serviços de carros e à morte da mãe de Kalanick.

Em lugar de apontar um presidente interino, Kalanick disse que os 14 subordinados que se reportavam diretamente a ele administrarão a empresa em sua ausência.

O estilo enérgico de gestão de Kalanick definiu por anos a controvertida empresa, cuja avaliação de mercado atingiu US$ 68 bilhões ao mesmo tempo em que ela adquiria a reputação de desrespeitar regras e de fazer qualquer coisa para conseguir crescimento.

A decisão dele de se afastar se segue a uma crise que abalou profundamente a empresa de capital fechado mais valiosa do Vale do Silício e causou a saída de muitos de seus mais importantes executivos.

Em e-mail aos funcionários da Uber, Kalanick escreveu que "acontecimentos recentes me fizeram ver que pessoas importam mais que o trabalho e que preciso me afastar das tarefas do dia a dia para lamentar a perda de minha mãe, sepultada na sexta-feira; para refletir; para trabalhar em minha melhoria pessoal; e para me concentrar na formação de uma equipe executiva de categoria mundial". Ele disse que ainda estaria envolvido nas decisões estratégicas.

Nesta terça-feira (13), Kalanick também apresentou as conclusões de um relatório sobre a gestão e a cultura da Uber que identificou disfunções generalizadas no comando da empresa de transporte.

O relatório, preparado por Eric Holder, antigo secretário da Justiça dos Estados Unidos, e por sua colega Tammy Albarran, fez recomendações abrangentes que incluem maior independência para o conselho, treinamento obrigatório para os executivos, e a proibição de relacionamentos íntimos entre superiores e subordinados.p(gallery). Presidente da Uber brinca com fogo

NÃO TENHA MEDO DE PISAR NOS CALOS ALHEIOS

As constatações, baseadas em entrevistas com mais de 200 funcionários, também recomendam que a Uber reescreva seus 14 valores culturais (entre os quais recomendações como "não tenha medo de pisar nos calos alheios" e "batalhe sempre para estar por cima", a fim de eliminar valores que possam ser invocados para justificar mau comportamento.

Algumas dessas mudanças já estavam começando a ser adotadas. A empresa anunciou que sua sala central de reunião, antes conhecida como "sala de guerra", agora passaria a ser chamada de "sala da paz".

A Uber solicitou que Holder preparasse o relatório em razão de acusações de assédio sexual e sexismo apresentadas por uma antiga engenheira da empresa, Susan Fowler, que descreveu em um post de blog diversos incidentes que foram ignorados pelo departamento de recursos humanos da empresa.

As sugestões do relatório, que incluem a formação de um comitê de ética e a indicação de um presidente independente para o conselho da companhia, foram aprovadas unanimemente pelo conselho da Uber no domingo.

A decisão de Kalanick de se afastar marca uma mudança profunda em uma empresa que veio a representar tanto o melhor quanto o pior do Vale do Silício.

Alimentada por uma captação de capital sem precedentes junto a investidores internacionais que incluem TPG, Benchmark, Goldman Sachs, Google Venture e o Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita, a Uber arrecadou mais de US$ 15 bilhões em capital e se expandiu a 75 países em todo o mundo.

Sob o comando de Kalanick, a receita anual da empresa subiu para mais de US$ 7 bilhões.

No entanto, ele também se envolveu em uma série de decisões equivocadas que levaram a empresa à sua atual crise. Elas incluem o uso do software "Grayball para iludir as autoridades regulatórias e a aquisição mal concebida de uma start-up de carros autoguiados, que terminou envolvendo a Uber em um dispendioso processo judicial.

Os acionistas passaram a considerar o estilo pessoal agressivo de Kalanick cada vez mais como um problema.

No começo do ano, uma discussão na qual ele insultou um motorista da Uber foi capturada por uma câmera de vídeo, e muita gente acredita que o tom cultural estabelecido por ele para a empresa não seja compatível com uma companhia em amadurecimento, que planeja uma abertura de capital possivelmente já para o ano que vem.

Os acionistas da Uber vinham apelando cada vez mais pela saída de Kalanick, ainda que tecnicamente não possam derrubá-lo, devido às ações com direitos preferenciais de voto que Kalanick e seus aliados detêm.

Um relatório separado resultou da investigação de 215 casos de assédio e bullying, e resultou na demissão de 20 funcionários da Uber na semana passada, bem como em advertências e sessões obrigatórias de treinamento para dezenas de outros trabalhadores.

As crises reduziram o quadro de liderança da Uber, em um momento de crise. Emil Michael, o principal confidente de Kalanick e vice-presidente de negócios da Uber, foi demitido nesta segunda-feira (12) depois que o conselho estudou as recomendações do relatório de Holder.

A saga que engolfou a Uber atraiu a atenção do Vale do Silício e causou debate interminável sobre o papel desproporcional que os fundadores de empresas assumem, exercendo controle total sobre as companhias que lideram.

Kalanick afirmou em seu e-mail aos funcionários que esperava voltar à Uber como um líder melhor.

"Há muito de que nos orgulharmos, mas também muito a melhorar", escreveu.

"Se vamos trabalhar na Uber 2.0, também preciso trabalhar no Travis 2.0, a fim de me tornar o líder de que essa empresa necessita e que vocês merecem."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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