Folha de S. Paulo


Crítica

Preocupação com PIB impede avanço social, escreve economista

Christophe Ena - 9.mar.2016/Associated Press
Ato em Paris em favor da jornada de 35 h; para autor, movimento social é rebelião contra PIB
Ato em Paris em favor da jornada de 35 h; para autor, movimento social é rebelião contra PIB

Na virada do milênio, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos promoveu um evento para celebrar uma das grandes realizações do século 20: a invenção do Produto Interno Bruto (PIB).

Alan Greenspan, então chairman do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, mencionou um pequeno motivo para cautela: o PIB, ele lembrou à audiência, não revela tudo que é preciso saber.

O exemplo escolhido por ele foram os Estados do sul dos Estados Unidos, e seu forte uso de ar condicionado no verão. Tudo que esses Estados gastassem com isso estaria incluído no PIB.

Já em Vermont, a "brisa maravilhosa" tornava o ar condicionado desnecessário e não aparecia nos registros de atividade econômica.

"Se nada mais variar", concluiu Greenspan, "os padrões de vida das duas regiões serão iguais, mas o PIB de Vermont será mais baixo que o do sul".

Para Greenspan, o ponto era que PIB e bem-estar não devem ser confundidos, algo que vem ocorrendo cada vez mais. Mas para céticos como Lorenzo Fioramonti, professor de Economia Política na Universidade de Pretória (África do Sul), essa forma amena de crítica mal arranha a superfície do problema.

Em "The World After GDP" [O mundo após o PIB], ele argumenta que o indicador é não só um espelho distorcido no qual contemplar a crescente complexidade de nossas economias mas também um obstáculo à construção de sociedade melhores.

O PIB nasceu na depressão e na guerra. Antes dos anos 30, as autoridades econômicas planejavam suas políticas recorrendo apenas a conjuntos de dados individuais, como as cargas dos vagões de trem. A realização que o PIB representa está em comprimir toda a produção de um dado período em um único número. O homem a quem em geral é atribuída a invenção do PIB é Simon Kuznets. Em 1934, ele demonstrou em um estudo que, nos três anos posteriores ao crash em Wall Street, a produção da economia dos Estados Unidos havia caído praticamente à metade.

Isso forneceu a Franklin Roosevelt a munição de que ele precisava para montar a segunda fase do New Deal.

Mas, como escreve Fioramonti, Kuznets começou a se inquietar cada vez mais com a direção em que o PIB estava seguindo. Um dos problemas do indicador é que ele mede toda a produção, boa e ruim. Mede indústrias poluidoras que causam doenças às pessoas e mede os serviços médicos necessários a curá-las. O PIB mede coisas que Kuznets considerava não deverem ser computadas em uma sociedade civilizada: armamentos, crime, combate ao crime, desastres de automóveis, os esforços de limpeza posteriores a desastres naturais, o percurso do subúrbio ao centro para o trabalho e a especulação.

Kuznets, cujas opiniões eram um tanto pudicas, acreditava que até a publicidade devesse ser excluída, porque os publicitários trabalhavam apenas para despertar o apetite por consumo irresponsável - o que, é claro, também é causa de aumento do PIB.

Se o PIB contém tanto que não deveríamos valorizar, exclui muita coisa a que deveríamos dar valor. Apenas transações monetizadas contam. Assim, uma compra de heroína ou uma hora de sexo pago contam para o PIB, enquanto, pelo menos no Reino Unido, 15 horas de trabalho voluntário têm valor zero. A arbitrariedade na definição de produção, na distinção entre o que constitui atividade econômica e o que não constitui,

pode ser percebida com base no fato de que o Reino Unido conta a prostituição feminina como atividade econômica mas não a prostituição masculina. Nos Estados Unidos, nenhuma das duas coisas é computada.

Fioramonti já havia escrito sobre as deficiências do PIB. Seu livro anterior, "Gross Domestic Problem" (2013), tratava de maneira provocadora e ocasionalmente incisiva o indicador que veio a dominar nosso discurso político e econômico.

Em "The World After GDP", ele leva seus argumentos adiante, imaginando um mundo pós-PIB que parece ser uma utopia que mistura aldeia gandhiana e app de serviço de carros.

Para a Fioramonti, a principal coisa que nos impede de chegar a esse nirvana é a visão institucionalizada de nossa economia e sociedade que o PIB encapsula.

Dois argumentos são centrais para o livro, um deles perfeitamente plausível e o outro altamente improvável.

A visão plausível é que recebemos aquilo que medimos. Conferimos valor ao que é visível - atividade econômica transacionada - e desconsideramos ou ignoramos o que é invisível. Isso afeta a política pública e até mesmo nossa forma de pensar, de maneiras insidiosas. Tendemos a apoiar qualquer coisa que eleve a atividade econômica, ainda que traga consequências adversas - por exemplo a degradação do meio ambiente ou uma jornada de trabalho socialmente destrutiva.

E denegrimos ou ridicularizamos qualquer coisa que coloque em risco a atividade econômica, como a jornada semanal de trabalho de 35 horas vigente na França ou a ideia de um imposto sobre a emissão de poluentes.

Um político precisa ser corajoso para optar por espaços verdes e abertos, que não produzem atividade econômica mensurável, de preferência a um oleoduto ou shopping center, que o fazem. "O PIB é a mais poderosa estatística já inventada", escreve Fioramonti. "Não é só um número, mas o objetivo final da política econômica e um referencial mundial de sucesso".

Na interpretação de Fioramonti, a maneira pela qual viemos a encarar nossa economia - como se ela fosse inteiramente separada do mundo em que vivemos - transforma o potencial Homo socialis, cooperativo e altruísta, no egoísta e cobiçoso Homo economicus. "A 'sociedade PIB' perfeita", ele escreve, "é aquela na qual os pais passam no trabalho todo o tempo de que não precisem para dormir", e pagam a outras pessoas para que cuidem de seus filhos, assim contribuindo para o PIB não só uma como duas vezes.

O que certamente é uma questão a considerar. O segundo argumento de Fioramonti, no entanto, é mais abstruso. Ele entende quase todo movimento social ou inovação tecnológica como uma rebelião, vinda de baixo, contra o mundo do PIB, no qual as ordens vêm de cima. Assim, o bitcoin, cafés com preços flexíveis e apps de compartilhamento são todos encarados como exemplos de um movimento liderado por cidadãos que conduzirá ao triunfo da descentralização, lazer e reciclagem.

Fioramonti fala sobre o Airbnb, Uber e serviços como o VizEat, que permite que pessoas abram suas salas de jantar a convidados pagantes, como partes da economia do compartilhamento. Para ele, esses serviços de pessoa a pessoa desafiam o poder das multinacionais e exibem o lado melhor de nossa natureza. Mas é igualmente fácil vê-los como oposto disso. Em lugar de compartilharem, as pessoas estão ocupadas monetizando coisas que anteriormente eram gratuitas: emprestar a casa a um amigo ou cozinhar uma refeição para alguém.

Dizer que a visão de mundo de Fioravanti fica perto de uma caricatura da utopia hippie seria usar erroneamente a palavra "perto". Eis como Fioravanti acredita que o futuro será: "Uma miríade de projetos de energia pessoais, feiras de produtos orgânicos locais, cooperativas de slow food, projetos comunitários de jardinagem, serviços de manutenção e reforma, oficinas de artesanato, oficinas de serviços pessoais individualizados, saúde integrada, escolas controladas pelos pais e práticas de conservação participativas".

É um mundo no qual sandálias de cânhamo e frutas secas torradas têm valor duplo e os serviços de assessoria de um banco de investimento têm valor zero. Trata-se de uma visão alternativa perfeitamente respeitável sobre o que o mundo deveria ser. O erro é que alguém imagine que essa é a visão de todas as demais pessoas, e que essa é a maneira pela qual veríamos as coisas se os antolhos do PIB fossem removidos de nossos olhos.

Na primeira parte do livro, Fioramonti escreve que "estou completamente ciente de que mudar um número não mudará o mundo, na prática". Mas nas páginas subsequentes, ele muitas vezes parece estar argumentando exatamente isso.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

"The World After GDP"
QUANTO: R$ 30,70 (LIVRO DIGITAL; 240 PÁGS.)
AUTOR: LORENZO FIORAMONTI
EDITORA: POLITY


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