Folha de S. Paulo


Navios e marinheiros abandonados viram cenário comum nos portos

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Navio Chem Violet, que transporta óleo para a Petrobras
Navio Chem Violet, que transporta óleo para a Petrobras

Numa tarde ensolarada de junho, o advogado Elayyan Aladdin conseguiu chegar ao navio Chem Violet, ancorado na cidade de Macaé (RJ), após um périplo de quatro horas entre bloqueios, trajetos de barco e subidas em escadas de até 20 metros.

"Vocês teriam água?", foi a pergunta do advogado que causou constrangimento a seus clientes, marinheiros turcos que o chamaram ao navio de transporte de óleo para a Petrobras.

Uma garrafa chegou a Aladdin com a informação que o consternou: "É a última, doutor".

Os 12 tripulantes estavam há três semanas sem receber suprimento, convivendo com lixo e insetos, doentes e com o risco de pane no navio com 1 milhão de litros de óleo.

O cenário passou a ser comum no mercado de navegação mundial: o abandono de marinheiros que prestam serviços a grandes empresas de transporte.

Até a crise de 2008, o setor vivia um boom, impulsionado pelas promessas de crescimento do comércio global. Mas acordos de livre-comércio e preço das commodities em alta não se consolidaram. O resultado é que a supercapacidade dos navios jogou os preços de frete no chão.

Quando um navio atraca num país, é recebido por empresas prestadoras de serviços de fornecimento de combustível, comida, entre outras necessidades. Se o dono do navio não pagar esses benefícios, as empresas param de fornecer. Há casos de navios arrestados por dívidas, e as contas são bloqueadas.

No caso dos turcos do Chem Violet, em maio eles tiveram que alugar por R$ 100 um barco para levá-los à cidade e, com R$ 400 que conseguiram juntar na tripulação, precisaram comprar o que fosse possível para suprir 12 tripulantes. Quando o advogado chegou, havia apenas as garrafas de água.

"Era um vulcão prestes a explodir", conta um dos marinheiros que conversou por e-mail com a Folha.

Após medida judicial, Alladin conseguiu que o fornecimento de alimentos fosse retomado pela Petrobras, que gastou R$ 42 mil em uma compra. A estatal fretou o navio da Ecoships, que seria a responsável pelo pagamento.

Segundo o advogado, a estatal queria trocar o suprimento de comida pela entrega do óleo, retido pelos tripulantes para garantir a sobrevivência deles.

Diante das condições relatadas, Cláudio de Castro Freitas, juiz da Vara do Trabalho de Macaé, foi inspecionar o navio. Lá, os marinheiros relataram que, além de fome, passavam a humilhação de não receber salários por até oito meses, deixando suas famílias sem assistência, algumas despejadas de suas casas.

"O capitão tem vergonha de falar com sua esposa", relatou um dos marinheiros, levando o juiz a decidir pela repatriação dos turcos -com despesas e dois salários pagos pela Petrobras.

PESCA

Em Fortaleza (CE), o navio Varada Búzios estava ancorado com filipinos e ucranianos sem salários em dia e alimentação. Sob a condição de anonimato, um marinheiro contou que precisaram pescar para obter comida.

Além disso, só tinham combustível para usar o aquecimento durante 14 horas do dia. No restante, desligavam tudo para ter a certeza de que teriam condições de fazer a comida depois.

A manutenção do navio não era feita corretamente, segundo ele, por falta de peça. Sem manutenção adequada, navios com produtos perigosos, podem, por exemplo, deixar vazar combustível.

"Se quebrar o ar-condicionado, tem de canibalizar um outro que está parado, porque não tem peça", diz um marinheiro brasileiro que está no Varada Santos, que presta serviços na bacia de Campos (RJ).

Segundo ele, os navios Varada, da empresa Neyah Ship, trabalham para a Petrobras, mas não cumprem as regras da estatal. Estabelecem condições desumanas de trabalho. Ele diz que a comida só é suficiente para metade do tempo. Meses atrás, a água acabou e a tripulação bebeu o que coletaram das chuvas.

OUTRO LADO

A Petrobras informou que "exige elevado padrão de qualidade técnica das embarcações e dos sistemas de gestão das empresas que os operam".

A empresa reconheceu que o armador "deixou de cumprir suas obrigações" no caso do Chem Violet e que, por isso, a estatal "assumiu diretamente as providências de fornecer provisões ao navio e providenciou o retorno da tripulação para seu país de origem".

A estatal havia fretado o navio da Ecoships, que seria usado para o transporte de combustível.

Em relação ao Varada Santos, a empresa afirma que cobrou da prestadora de serviços "evidências do abastecimento das embarcações, tendo recebido o histórico dos pedidos e entregas com quantidades compatíveis com a tripulação".

Nesse caso, o navio prestou serviços para a companhia estatal brasileira na região da bacia de Campos, no litoral fluminense.

A Antaq (Agência Nacional de Transporte Aquaviário) não respondeu as perguntas da reportagem sobre se havia fiscalizado as condições dos navios.

Sobre a falta de normas para fiscalizar estrangeiros, a agência informou que em reunião vai deliberar sobre um texto que vai ser colocado em audiência pública e que encomendou estudos sobre regulação de mercados e competição com a Universidade de Brasília.

ASSISTÊNCIA

A Ecoships informou que não gostaria de estar numa situação como a que ocorreu no Chem Violet, que ficou parado em Macaé, e diz que prestou assistência à tripulação.

De acordo com a companhia, o problema ocorreu devido ao banco que arrestou os recursos pagos pela Petrobras pelo contrato. Ela afirmou ter sido a maior prejudicada pelos problemas.

A Varada do Brasil, responsável pelos navios da Neyah, informou que cumpre normas brasileiras e condições de contrato com a Petrobras. Segundo a empresa, as embarcações são vistoriadas e qualquer não conformidade é corrigida imediatamente.

A empresa também nega atrasos de salários ou falta de condições de saúde e alimentação a bordo.

"Nosso sucesso depende das habilidades e dedicação de nossos colaboradores. Valorizamos a lealdade, a honestidade e a integridade e tratamos uns aos outros com respeito", informa em nota.


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