Folha de S. Paulo


Precisei reiniciar carro autônomo do Uber para andar; confira relato

Estou estacionado em uma área recoberta por cascalho, do lado de fora de uma antiga fábrica que engarrafava catchup para a Heinz, em Pittsburgh, e me sinto frustrado. O meu carro autônomo do Uber se recusa a dar a partida.

O engenheiro no assento do passageiro ao lado do meu, que trabalha na empresa há apenas três semanas e havia perguntado se eu gostaria de dirigir, interferiu para explicar que eu deveria tentar desligar o carro e ligá-lo de novo —como a gente faz quando um computador trava.

No caso, meu "computador" é um sedã híbrido Ford Fusion modificado, que porta o codinome Boron 6, um elemento atômico muitas vezes encontrado em ímãs, detergente para roupas e reatores nucleares. O Uber o equipou com mais de 20 câmeras, sete lasers, um sistema de detecção por laser com rotação de 360 graus e outros 1.400 componentes adicionais que registram milhões de dados sobre o ambiente em tempo real, enquanto dirijo o veículo. Se o carro funcionar como anunciado, chegará o dia em que nem eu e nem qualquer outra pessoa nos sentaremos de novo ao volante de um automóvel.

Por enquanto, uma área de alguns quilômetros quadrados no centro de Pittsburgh representa os sonhos do Uber quanto ao futuro móvel, no qual as pessoas abrirão mão da propriedade de carros em favor de chamar um veículo seguro e sem motorista usando seus smartphones. Na quarta-feira, o Uber lançou um programa piloto de seus carros autoguiados para seus usuários mais leais em Pittsburgh, dando-lhes a oportunidade de chamar um Uber autoguiado pela primeira vez.

"Essa é uma das coisas mais importantes que os computadores farão ao longo dos próximos 10 anos", disse Anthony Levandowski, o líder do projeto de carros autoguiados da empresa e cofundador da Otto, uma start-up que desenvolve caminhões autoguiados e foi adquirida pelo Uber no mês passado. "A condução autônoma é central para a missão do Uber, de transporte confiável em toda parte e para todos".

Para o Uber, há muito em jogo na experiência com veículos autoguiados. Muita gente questionou por que o Uber está ingressando no setor de carros autônomos, quanto dinheiro o esforço está custando e quais seriam as potenciais recompensas. Isso sem mencionar que o Uber enfrenta concorrência dura na área dos veículos autoguiados.

O Google tem sete anos de vantagem na pesquisa de carros autoguiados. Montadoras de automóveis como a Tesla, Mercedes Benz, BMW e Infiniti já estão oferecendo recursos de autocondução em alguns veículos. A Apple vem testando veículos autoguiados em uma iniciativa chamada Project Titan, que vem passando por altos e baixos.

Para recuperar o atraso, o Uber investiu US$ 680 milhões —cerca de 1% do valor de mercado da empresa— para adquirir a Otto e sua equipe de veteranos da robótica. Baseado em San Francisco, o Uber também investiu milhões de dólares, contratou centenas de pessoas, e dedicou 18 meses à construção de seu Centro de Tecnologias Avançadas, aqui em Pittsburgh, para comandar seus esforços nos carros autoguiados.

Uma questão persistente quanto ao projeto é de que maneira os carros autoguiados afetarão o modelo de negócios do Uber. Boa parte do sucesso da empresa se baseia na premissa de que as pessoas deveriam compartilhar os carros que ficam ociosos, se tornando motoristas de aluguel nas horas vagas.

Um carro autônomo evita a necessidade de motoristas humanos, uma clara fonte de tensão para os motoristas que trabalham com a empresa hoje. Os executivos da companhia dizem que os carros autoguiados seriam apenas uma parte dos negócios futuros do Uber, que combinariam carros autônomos e carros com motoristas humanos.

O Uber também enfrenta incertezas regulatórias no caso dos veículos autoguiados, e isso pode impedir que eles sejam lançados em todo o país.

"As barreiras regulatórias se relacionam ao tamanho que o risco pode assumir e quem arcará com ele", disse Ryan Calo, professor da Escola de Direito da Universidade de Washington e especialista em robótica. Agências governamentais como a Administração de Segurança do Tráfego Rodoviário, terão de decidir quanto a patamares mínimos de segurança muito antes que os veículos autônomos possam ser usados nas rodovias nacionais, ele disse.

COLETA DE DADOS

O Uber começará a recolher dados para responder a algumas dessas questões por meio de seus testes de carros autoguiados em Pittsburgh, uma cidade conhecida por sua topografia única e por seu planejamento urbano. A cidade, em essência uma península cercada de montanhas, se estende por um gigantesco triângulo, com curvas abruptas, encostas íngremes, mudanças súbitas de limites de velocidade e dezenas de túneis. Há 446 pontes, número maior que o existente em Veneza, Itália. Os moradores são conhecidos pela "conversão à esquerda padrão Pittsburgh", uma arriscada manobra em cruzamentos.

"Trata-se de um ambiente ideal para testes", disse Raffi Krikorian, diretor de engenharia do Centro de Tecnologias Avançadas do Uber. "De diversas maneiras, Pittsburgh é o duplo diamante negro da direção automotiva", ele disse, fazendo uma analogia com o esqui a fim de sublinhar as dimensões do desafio.

Experimentei os problemas em primeira mão durante quase uma hora de passeio no Boron 6, em trânsito leve no centro de Pittsburgh. Quando o teste foi iniciado, na quarta-feira, alguns veículos experimentais —inicialmente Ford Fusions— passaram a percorrer as ruas, cada qual transportando um engenheiro de segurança treinado para reassegurar os passageiros de que o processo é seguro.

Houve momentos em meu passeio, a maior parte do qual passei como passageiro no assento traseiro do Boron 6, em que meu engenheiro de segurança teve de tomar o volante e cuidar das curvas, em cruzamentos nos quais é sabido que os motoristas locais aceleram. Quando um motorista de caminhão fez uma manobra ilegal de ré, o engenheiro de segurança pisou no freio, e imediatamente assumiu o controle do carro.

Se o engenheiro de segurança se sentisse inseguro, tinha o recurso de apertar um grande botão vermelho no console central - estranhamente parecido com o botão do assento ejetor em um carro de James Bond - a fim de desativar a autocondução. Para reativá-la, ele só precisaria pressionar um esguio botão de aço ao lado de uma placa metálica de identificação afixada ao console.

Se eu me sentisse inseguro como passageiro, também poderia pedir que o motorista humano assumisse o controle do veículo, ou poderia apertar um botão em uma tela montada diante do banco traseiro e pôr fim à corrida. A tela também permitia monitorar o ambiente de imagens infravermelhas registradas pelo carro, uma atualização 3D em tempo real, e tirar um selfie com uma câmera embutida no console. Depois da corrida, o Uber envia ao passageiro uma mensagem de texto contendo o selfie e um.GIF animado da rota seguida, extraído do modelo 3D.

Mas pela maior parte do passeio, em raros momentos me senti inseguro. No modo autoguiado, as curvas e freadas pareciam suaves, e muitos vezes voltei o olhar ao motorista para verificar se era ele que estava ao volante ou se o carro estava operando sozinho. Fiquei um pouco nervoso em alguns momentos, ao perceber o quanto estávamos perto dos carros estacionados à direita, enquanto o computador guiava, ainda que isso possa ter sido apenas uma reação mental de uma mente mais vigilante do que o normal quanto àquilo que me cercava.

Do ponto de vista do Uber, o veículo autoguiado opera com mais segurança que qualquer motorista humano. Meu Uber sem motorista parava bem distante dos carros à frente, nos cruzamentos. Respeitava rigorosamente o limite de velocidade —40 km/h na área em que fizemos nosso percurso— mesmo quanto não havia trânsito. No semáforo, esperava pelo sinal verde antes de uma conversão à direita, para grande irritação dos motoristas humanos que estavam atrás do carro.

O Uber afirma que os carros autoguiados podem reduzir o número de mortes em acidentes envolvendo veículos, o que inclui quase 40 mil nos Estados Unidos no ano passado, o mais letal em termos de mortes em acidentes de trânsito desde 2008, e o maior avanço percentual de fatalidades em quase 50 anos, de acordo com o Conselho Nacional de Segurança norte-americano. Houve uma morte de um motorista de carro autoguiado, a de um dono de um Tesla envolvido em um acidente causado pelo piloto automático, em maio.

Alguns dos planos do Uber para carros autoguiados podem parecer excessivamente ambiciosos. Quando a companhia anunciou seu projeto piloto de carro autônomo, no mês passado, a expectativa era de que o teste envolvesse utilitários esportivos Volvo XC90, modificados em parceria com a montadora. O Uber agora afirma que o XC90 deve começar a rodar por volta do final do ano, mas não ofereceu explicações quanto ao motivo do atraso. A Volvo não respondeu a um pedido de comentário.

Quando meu passeio no Boron 6 chegou ao fim —eu tinha percorrido pouco mais de 30 quilômetros no veículo— era difícil evitar a sensação de que eu havia me tornado uma celebridade, ou talvez um marciano. Os outros motoristas olhavam espantados, e um rapaz em um patinete Razor me olhou boquiaberto em uma esquina, e acenou para a mãe chamando a atenção dela para a cena.

Esse futuro demorou muito a chegar. A publicidade de carros autoguiados remonta a pelo menos a década de 50, com imagens de famílias acomodadas nos assentos traseiros de seus carros, jogando dominó. Algumas das pessoas envolvidas no projeto do Uber dedicaram suas carreiras inteiras a trabalhar para um dia como a quarta-feira.

Haverá defeitos, como o que encontrei quando me sentei pela primeira vez ao volante e o carro autoguiado não ligou. É esse o ponto do teste. A profusão de sensores e equipamento de gravação determinará o que acontece —incluindo todos os erros— "para que possamos aprender mais sobre o que torna motoristas e passageiros confortáveis e seguros", disse Emily Duff Bartel, gerente de produtos no Centro de Tecnologias Avançadas.

Para mim, bastaram 10 minutos de conserto para resolver os defeitos, e o Boron 6 terminou por se autoligar e autodirigir. Ainda que depois de alguma intervenção humana.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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