Folha de S. Paulo


Piketty ganha aliados no mercado financeiro

Loic Venance - 13.mai.2016/AFP
Tese do economista Thomas Piketty de que capitalismo está ruindo pode ser validada por investidores
Tese do economista Thomas Piketty de que capitalismo está ruindo pode ser validada por investidores

"Capital no Século 21", livro que Thomas Piketty publicou em 2013, foi descartado pelos seus críticos mais ferozes como doutrinário, estatisticamente impreciso e tedioso. Passados três anos, a tirada do economista francês contra a desigualdade financeira cada vez maior começa a receber validação de um quadrante improvável: os investidores no mercado de ações.

Na semana passada, acionistas se rebelaram contra as políticas de remuneração do Deutsche Bank e do Goldman Sachs. Votos de censura semelhantes haviam sido registrados no começo do trimestre no Citigroup, na montadora de automóveis francesa Renault e em algumas companhias britânicas, entre as quais a petroleira BP.

A diferença este ano é que a rebelião reflete preocupação sobre a disparidade de patrimônio entre os executivos e as pessoas comuns. É um desdobramento difícil de compreender para aqueles que, como muita gente no setor privado, consideram que a missão social das empresas é realizar lucros decentes, e que portanto os investidores deveriam remunerar à altura os patrões que os conseguem.

Rebeliões quanto a remuneração não são novidade. No conglomerado publicitário WPP, que pagou espantosos 70 milhões de libras ao seu presidente-executivo Martin Sorrell no ano passado, elas se tornaram uma pantomima anual, descartada rapidamente pelo conselho.

Hans-Christoph Hirt, da Hermes, uma consultoria e administradora de investimentos britânica que protestou contra o plano de remuneração do Deutsche, diz que "existe muito mais sensibilidade este ano às remunerações altas e à disparidade de renda. Jamais vi essas questões serem discutidas de maneira tão aberta".

O líder de uma instituição da City londrina, um homem de tendências conservadoras, concorda. "A disparidade de renda se tornou uma grande questão, aqui e nos Estados Unidos. É parte do subtexto do que vem acontecendo nas votações quanto a remuneração", ele afirma.

Fofocando ao jantar, o diretor financeiro de uma companhia que faz parte do índice de ações britânico FTSE 100 disse que "os administradores de investimentos estão restringindo a remuneração dos executivos porque, se não o fizerem, o governo já disse que o fará".

Não existem provas que sustentem esse boato, inspirado talvez pela disposição do governo britânico de estipular valores para o extremo oposto da escala salarial, por meio de uma nova lei de salário mínimo condigno. É fato, porém, que o governo bloqueou, em certos casos, o pagamento de bonificações a executivos de bancos que foram socorridos com fundos públicos.

Paris apanhou o bastão do intervencionismo, este ano. O Estado francês esteve entre os investidores que, no mês passado, votaram contra o pacote de remuneração de € 7,3 milhões de Carlos Ghosn, o presidente-executivo da Renault.

Mesmo com o novo pendor ideológico das votações quanto a salários executivos, os guerreiros pela justiça social que estejam em busca de coerência sairão desapontados. A disparidade de renda, que vem crescendo no Reino Unido e nos Estados Unidos desde os anos 80, é uma questão de fundo, difusa. As votações individuais de censura tendem a uivar, como sempre fizeram, contra "recompensar o fracasso", ou giram em torno de problemas peculiares das companhias em questão.

As duas descrições se aplicam ao Deutsche, no qual 52% dos acionistas votaram contra o plano de remuneração de executivos. O banco registrou € 6,8 bilhões em prejuízo em 2015. Suas ações caíram em 60% desde o pico atingido em 2014. O momento era inoportuno para introduzir um "prêmio de desempenho divisional", cujos beneficiários seriam em geral definidos por um conselho que conta com representantes sindicais em sua composição.

A ala londrina da insurreição entrou em ação no mês passado, quando 59% dos acionistas da BP reprovaram o relatório da companhia sobre remuneração. Este incluía remuneração de quase US$ 20 milhões para Bob Dudley, em 2015. O presidente-executivo não merecia um aumento de US$ 1,2 milhão em sua bonificação, para US$ 4,2 milhões, em um ano no qual as ações da empresa caíram em quase 15%, apontaram os críticos.
Votações de protesto subsequentes também surgiram em grandes empresas como a mineradora Anglo American e o grupo farmacêutico Shire.

Em certo nível, essas votações têm pouca importância. Os aplausos lentos e irônicos a propostas generosas de remuneração foram, com uma só exceção, apenas consultivos.

Mas em outro nível, elas importam, e muito. Não só porque muitas empresas cotadas na Bolsa de Londres enfrentarão votações com resultados de aplicação compulsória no ano que vem, mas porque a exibição de irritação demonstrou que o consenso quanto a remuneração que emergiu nos anos 2000 está desaparecendo.

Poucos investidores europeus objetavam a remunerações generosas, antes, desde que o desempenho da empresa fosse bom. Agora eles dizem que o "quanto" —o valor absoluto em questão— é importante. Isso se reflete nos planos do fundo de investimento petroleiro estatal norueguês, que tem US$ 870 bilhões sob administração, de votar pela rejeição de remunerações que considere excessivas. Mas os acionistas não dirão exatamente o que configura uma remuneração "alta demais", naquele nível hipotético que ajudaria os comitês de remuneração a determiná-la.

Da mesma forma, opções de ações foram substituídas por "planos de incentivo de longo prazo" (LTIP), baseados em ações, já há muito tempo, nas companhias britânicas bem comportadas. Os LTIP são um produto característico da engenhosidade exagerada dos consultores de remuneração. Os esquemas tendem a uma complexidade extrema, e ao pagamento de bonificações por resultados anteriores exatamente no momento em que os lucros de uma empresa começam a cair.

Os investidores concordam em que os LTIP fracassaram. Mas não chegam a acordo sobre o que deveria substitui-los. A determinação da remuneração de executivos continua a parecer tão disfuncional quanto sempre foi.

O capitalismo não está mais perto de desabar ao peso de suas supostas contradições do que no momento em que o professor Piketty publicou um livro cujo título deliberadamente ecoa o de "O Capital", de Karl Marx.
O sistema pelo qual os capitalistas remuneram seus principais líderes, por outro lado, parece estar claramente cambaleando.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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