Governos devem regular o uso de e-mails de trabalho, para evitar a sobrecarga de trabalhadores? Na França, a resposta à pergunta caminha em direção ao "sim".
O Partido Socialista do presidente francês François Hollande pretende votar uma medida que dê aos empregados, pela primeira vez, o "direito de se desconectar".
Empresas que empregam mais de 50 pessoas serão obrigadas a elaborar uma carta de boa conduta estabelecendo quais são os horários fora da jornada de trabalho - normalmente o período noturno e o fim de semana - quando os funcionários não deveriam enviar ou responder e-mails profissionais.
O assunto já foi motivo de piada na imprensa internacional quando a proposta foi sugerida pela primeira vez, com ironias a eventuais inspetores bisbilhotando os trabalhadores mais plugados.
Mas o governo francês argumenta que o problema da conexão permanente com o trabalho é universal e crescente - e que uma intervenção é necessária.
"Todos os estudos mostram que existe muito mais estresse relacionado ao trabalho hoje do que havia antes, e que este estresse é constante", disse à BBC o parlamentar socialista Benoit Hamon.
"Os funcionários saem fisicamente do escritório, mas eles não saem do trabalho. Eles continuam presos por um tipo de coleira eletrônica - como um cachorro. As mensagens de texto e os e-mails colonizam a vida do indivíduo até que ele ou ela desmorone."
A medida faz parte de uma lei trabalhista, batizada com o nome da ministra do Trabalho Maryam El Khomri. Muitas das normas em discussão desencadearam semanas de protestos na França.
Mas, em meio às divergências quanto à lei, há certo consenso em relação à cláusula da "desconexão".
REVOLUÇÃO DIGITAL
Nova lei trabalhista gerou protestos na França |
Poucos - na França ou em qualquer outro país - discordariam de que a falta de limites entre o horário de trabalho e o horário de descanso é uma consequência problemática da revolução digital.
"Em casa, o local de trabalho pode ser a cozinha, o banheiro ou o quarto. Passa-se de um e-mail de trabalho a um WhatsApp pessoal, a uma foto no Facebook e a uma mensagem de texto de trabalho - tudo na mesma ferramenta", afirma Linh Le, da consultoria em gerenciamento Elia, em Paris.
"Você está em casa, mas você está ausente, e isso é uma ameaça real aos relacionamentos", acrescenta.
Le diz que as empresas que ela aconselha estão cada vez mais cientes dos perigos que isso representa para os funcionários. A ameaça mais extrema é o chamado "burnout" (ou exaustão), que ela descreve como "sofrimento físico, psicológico e emocional causado por uma total inabilidade de descansar".
Mas, além de poupar seus funcionários do sofrimento, as companhias também precisam que seus funcionários sejam criativos. E isso é menos provável sem um horário regular de descanso, segundo Le.
A consultora elogia a iniciativa de uma companhia de seguros dos Estados Unidos que deu aos funcionários dispositivos para monitorar o sono e paga bônus para aqueles que conseguem 20 boas noites de sono consecutivas.
Consultora afirma que em casa o local de trabalho pode ser qualquer um, até a cama |
"Mostra como as empresas reconhecem a importância de não assediar os funcionários em casa."
"Aqui na França falamos de dois tipos de tempo, como na definição dos gregos: chronos e keiros. Chronos é o tempo regular, que pode ser dividido. Keiros é o tempo inconsciente... o tempo criativo. Keiros é essencial para o pensamento produtivo, e os bons empregadores sabem que precisam protegê-lo."
FUNCIONA?
Mas muitos duvidam que a restrição proposta vá funcionar.
Na PriceMinister - uma empresa de comércio online sediada em Paris -, o presidente-executivo Olivier Mathiot instituiu as "sextas-feiras sem e-mail", para estimular os funcionários a usarem menos a ferramenta.
A gerente de vendas Tiphanie Schmitt concorda com a iniciativa - por estimular as pessoas a conversarem -, mas ela diz que não gostaria de ver o governo interferindo na forma como ela trabalha.
"Eu trabalho com vendas. Gosto de vendas. Significa que eu uso e-mail tarde da noite e durante o fim de semana. Não quero que minha empresa me impeça de usar minha caixa de e-mail só por causa de uma lei", diz.
Em um bar chamado Bowler, perto da Champs-Elysees, local onde se reúnem funcionários dos setores financeiro e de tecnologia, as opiniões são parecidas.
"Acho que (o direito de se desconectar) é maravilhoso para melhorar a condição humana, mas totalmente inaplicável", diz o programador de software Gregory.
Funcionários do setor de tecnologia aprovam o 'direito a se desconectar' mas acreditam que lei é inaplicável |
"Em minha companhia nós competimos com desenvolvedores da Índia, China, Estados Unidos. Precisamos falar com pessoas no mundo todo tarde da noite. Nossos concorrentes não terão as mesmas restrições (caso a norma entre em vigor). Obedecer essa lei seria um tiro no pé."
Olivier Mathiot, da PriceMinister, acha que a questão deve ser tratada como uma questão de educação, e não de legislação.
"Na França somos campeões em aprovar leis, mas elas nem sempre ajudam quando o que precisamos é uma maior flexibilidade no local de trabalho", opina.
Para Linh Le, da consultoria Elia, a lei pode se tornar irrelevante rapidamente.
"Em poucos anos os e-mails vão deixar de existir. Teremos outra coisa", argumenta.
Mesmo os que torcem pela aprovação da lei, como o parlamentar Benoit Hamon, admitem que o impacto dela é limitado - a proposta não prevê penas para a violação da lei. As empresas devem obedecer de forma voluntária.
Mas quase todos na França concordam que a questão do excesso de comunicação precisa estar na pauta de todos os empregadores.