Folha de S. Paulo


Crítica

Livro explica como a Delta foi da quase falência ao sucesso

Ric Feld/Associated Press
Avião da Delta Air Lines decola do aeroporto Hartsfield Jackson, em Atlanta (EUA)
Avião da Delta Air Lines decola do aeroporto Hartsfield Jackson, em Atlanta (EUA)

Nos EUA, diz-se que, ao morrer, não importa se você vai para o céu ou para o inferno, inevitavelmente você terá de passar pelo aeroporto de Atlanta. Pois o maior aeroporto do mundo em volume de passageiros transportados não seria o que é não fosse o desempenho da maior companhia aérea do mundo, a Delta Air Lines.

Maior em volume de passageiros transportados -foram 129 milhões no ano passado (mais do que no mercado Brasil inteiro)-e segunda em receita, atrás da American Airlines, a Delta é hoje uma das mais rentáveis do setor, com margens de lucro operacionais que costumam frequentar a casa dos dois dígitos. Trata-se de um desempenho raro entre as companhias tradicionais e que se vê apenas em companhias jovens e de baixo custo -e ainda assim quando o preço do barril de petróleo está tranquilo e favorável.

Mas quem vê a Delta hoje, com índices de pontualidade, regularidade, satisfação e rentabilidade que estão entre os melhores do mundo, esquece que há 11 anos a empresa esteve muito perto da falência, tendo acumulado mais de US$ 7 bilhões de prejuízo entre 2001 e 2005, pós 11 de setembro.

Mas qual o segredo Delta? Como a empresa conseguiu sair de um processo de recuperação judicial em um ano e, em pouco tempo, recuperar não apenas as finanças, como também a excelência operacional e a moral de seus funcionários, voltando a ser uma das queridinhas do mercado financeiro?

É o que tentam desvendar os jornalistas Seth Kaplan e Jay Shabat em "Glory Lost and Found: How Delta Climbed from Despair to Dominance in the Post-9/11 Era" [Glória perdida e reconquistada, como a Delta saiu do desespero para a liderança no pós 11 de setembro].

Em 456 páginas, o livro narra desde o surgimento da companhia em Atlanta em 1929 -quando um grupo de investidores locais, incluindo o filho do maior engarrafador de Coca Cola, comprou uma empresa aérea de pulverização cuja frota ficava ociosa na época da colheita-, até os dias atuais.

O livro é fruto de quase uma década de pesquisas e se baseia em análises de balanços, depoimentos com executivos, pilotos e funcionários, da Delta e de empresas concorrentes. Foi escrito de forma independente, sem interferência da empresa, e é uma aula de história e economia da aviação.

A complexidade e as particularidades do setor -da ciência de precificação de passagens à disputa por slots-são abordadas de forma simples e didática. E num setor tão afetado por variáveis externas, os autores contextualizam cada evento em seu momento histórico, econômico e cultural.

Mais do que a história da Delta, aprende-se sobre empresas concorrentes e seus personagens e sobre a indústria de modo geral. David Neeleman, fundador da brasileira Azul, e que tanta dor de cabeça deu à Delta com a sua JetBlue, ganha algumas páginas e é retratado de forma elogiosa como um "serial entrepreneur" (empreendedor serial).

TORRES GÊMEAS

O livro remete o tempo todo ao 11 de setembro, reconstituindo como algumas das principais lideranças da indústria aeronáutica americana vivenciaram e reagiram à notícia dos ataques.

Um dos pontos altos está na descrição dos bastidores das negociações da ajuda do governo às companhias aéreas logo após os ataques às Torres Gêmeas. As aéreas americanas, que iriam perder US$ 5 bilhões só no mês de setembro de 2011, estimavam perdas de US$ 24 bilhões como consequência dos ataques. Dias após os ataques, as empresas se uniram para pedir uma ajuda de US$ 5 bilhões ao governo e mais US$ 12,5 bilhões em garantias de crédito.

Sem qualquer aviso prévio, o então presidente da Delta Leo Mullin, um consultor com passagem pelo mercado financeiro e o primeiro presidente da companhia a não vir da indústria aeronáutica, se viu na liderança das duras negociações que o setor viria a ter com congressistas. Donald Carty, presidente da American Airlines e da ATA (Air Transport Association), entidade que representa as companhias nesse tipo de situação, estava ocupado demais com a perda de dois aviões nos ataques terroristas. A Delta era a única das três grandes aéreas americanas a não ter avião sequestrado no dia 11 de setembro. Os outros dois eram da United.

As aéreas conseguiram parte do que pleitearam: US$ 5 bilhões de socorro e US$ 10 bilhões em garantias. Mas, dias depois, medidas de segurança impostas pelo governo viriam a adicionar US$ 3,5 bilhões aos custos do setor.

A Delta, que meses antes do 11 de setembro assinara um acordo extremamente favorável aos pilotos, que lhes garantiria os melhores salários da indústria, amargou US$ 1,1 bilhão de prejuízo só em 2001. A queda na demanda por viagens que se seguiu aos ataques, somada a uma série de trapalhadas de gestão, incluindo o lançamento, em 2003, de uma subsidiária de baixo custo chamada Song, inspirada na JetBlue mas cuja cor verde limão virou motivo de piada, levaram a empresa à quase falência.

Mas após um ano e sete meses sob a proteção da lei americana de recuperação judicial, o Chapter 11, a Delta emergiu mais forte. Sob o comando de Richard Anderson, que se aposenta no mês de maio, fundiu-se em 2008 com a Northwestern Airlines e se transformou na maior empresa do mundo em valor de mercado.

Kaplan e Shabat não trazem uma única resposta para explicar aquela que é considerada uma das mais extraordinárias restruturações empresariais nos EUA. Mas duas características muito particulares da Delta chamam a atenção.

A primeira é a relação da empresa com seus funcionários. Tirando alguns períodos em seus quase 90 anos de história, a Delta sempre manteve ótimas relações trabalhistas, distribuindo bônus de forma generosa. Excluindo a classe dos pilotos, conseguiu convencer os demais a não se sindicalizarem –o que lhe garante mais flexibilidade para negociar acordos em tempos difíceis como em disparadas no preço do petróleo.

A não sindicalização de mecânicos, em particular, permitiu à Delta nadar contra a corrente em outra questão crucial: compra de aviões. A maioria das empresas trabalha com contratos de leasing que permite fazer substituição periódicas, mantendo a frota sempre nova e, consequentemente, os custos de manutenção sob controle, a Delta voava "latas velhas" por décadas a fio -e mantidas em ordem por mecânicos com jornadas mais flexíveis de trabalho até o limite da vida útil.

Durante o processo de recuperação judicial, a companhia preferiu investir na melhoria da experiência para os passageiros, modernizando interiores dos aviões, instalando Wi-Fi a bordo, retrofitando lounges em aeroportos e implementando facilidades como check-in pelo celular.

Enquanto os concorrentes mantinham contratos bilionários com Boeing e Airbus para poder exibir frotas modernas, a Delta seguia comprando velhos MD-90s, cuja produção foi encerrada em 2000. Quando muito a empresa investia em upgrades de aviônicos, sistemas elétricos e eletrônicos das aeronaves.

A empresa, que tem uma frota de 800 aviões, fez apenas uma grande aquisição nesta década. Em plena campanha de vendas dos novos Boeing 737 MAX ou Airbus 320 NEO, a nova geração de aeronaves de um corredor, mais eficientes e mais caras, a Delta encomendou 100 aviões do 737 antigo.

Os autores não entram no mérito, mas talvez isso ajude a explicar porque, de modo geral, as empresas aéreas vivem na penúria e os fabricantes de aviões bem mais afortunados.

Glory Lost and Found
AUTORES Seth Kaplan e Jay Shabat
EDITORA Airline Weekly
QUANTO R$ 25 na amazon.com.br (456 págs.)
AVALIAÇÃO Ótimo


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