Folha de S. Paulo


Com inquietações dos investidores, mercados criam 'realidade própria'

Associated Press
ORG XMIT: 241001_1.tif Mercado Financeiro: investidora olha painel com cotação de ações na Bolsa de Valores de Xangai (China). A Chinese investor checks the stock price at a private stock brokerage house Friday Sept. 7, 2007, in Shanghai, China. The lesson from Wall Street's recent turmoil for China is that it should open its financial markets to ensure its investors have the tools they need to manage risk and put capital to its best use, former U.S. Commerce Secretary Donald L. Evans said Friday. (AP Photo)
Investidora olha painel com cotação de ações na Bolsa de Valores de Xangai (China)

Isso não deveria ter acontecido. Enquanto os mercados de ações decaíam a uma baixa, os mercados de câmbio e títulos tomavam direção diametralmente oposta àquela que os bancos centrais haviam mapeado para eles.

O senso de que já não se pode confiar nos bancos centrais como proteção última para o sistema ajudou a conduzir os mercados a algo próximo do pânico. O maior risco que eles agora enfrentam é aquilo que George Soros define como "reflexividade" –que os mercados criem uma realidade própria e, com isso, forcem novas quedas nos preços dos ativos e um declínio no crescimento econômico.

Por diversos anos, os investidores vêm acompanhando o "comércio da divergência".

Isso se baseia na crença de que a economia dos Estados Unidos está crescendo mais do que a dos demais países desenvolvidos, e, portanto, necessitará de política monetária mais rígida, enquanto outras economias, especialmente o Japão e a zona do euro, teriam de afrouxar suas políticas.

O comércio da divergência implica em comprar dólares e, ao mesmo tempo, investir em ativos de risco nos países que desfrutam de política monetária relaxada. Nos últimos dois meses, essa proposta enfim começou a dar frutos, quando os Estados Unidos apertaram sua política monetária, enquanto outros países promoviam afrouxamento.

No entanto, o comércio da divergência sofreu uma reversão, causando prejuízos a muitos dos que o vinham promovendo. Em dezembro, o Banco Central Europeu (BCE) anunciou medidas para expandir suas compras de títulos sob o programa de relaxamento quantitativo. Logo em seguida, o Fed (Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos) levou adiante sua contenciosa decisão de elevar os juros. E, no final de janeiro, o Banco do Japão adotou taxas de juros negativas sobre as reservas que os bancos depositam junto a ele.

Ainda assim, o euro e o iene ganharam força considerável durante o período. E a divergência nos mercados de títulos –tal como demonstrada pelo diferencial de rendimento oferecido pelos títulos de dois anos do Tesouro dos Estados Unidos ante os bunds alemães ou os títulos do governo japonês– se estreitou consideravelmente.

Isso causou prejuízos para muita gente, forçando os operadores a realizar vendas em outras áreas, que em geral envolvem seus ativos de maior liquidez –o que representa um caso clássico de reflexividade.

Por que isso aconteceu? As quedas continuadas no preço do petróleo despertaram preocupação quanto aos investimentos de capital nos Estados Unidos e provocaram temores de calotes da parte dos operadores de petróleo de xisto betuminoso. A desaceleração na China, acoplada ao mau desempenho das autoridades do país no plano cambial, implica crescimento mais lento. Por isso, os investidores começaram a incluir em seus preços o risco de uma recessão nos Estados Unidos este ano.

Esse tipo de medo se autoalimenta. O alargamento dos spreads de crédito dificulta a vida dos bancos e das empresas endividadas. A queda no preço das ações é problema porque, para tomar de empréstimo uma frase de Mark Lapolla, da Stableford Capital, o índice S&P 500 representa "o caixa automático do planeta". Ele é um grande depósito de dinheiro que pode ser tornado líquido apressadamente. Já que o petróleo deixou de oferecer liquidez semelhante, o impulso de vender ações norte-americanas cresce e se reforça cada vez mais.

Enquanto isso, as ações concretas dos demais bancos centrais tiveram consequências negativas e inesperadas. O índice Topix de bancos japoneses caiu em mais de 20% desde que o Banco do Japão decidiu adotar taxas de juros negativas. Embora muita gente argumente que as taxas negativas de juros não necessariamente prejudicarão os lucros dos bancos, é evidente que os investidores japoneses discordam.

Esse sentimento propeliu a venda de ações de bancos europeus e dos Estados Unidos. E a reflexividade também se manifesta nisso. A única resposta lógica para um banco central cortar os juros prejudicaria a lucratividade dos bancos e, por extensão, sua capacidade de se manterem solventes.

Com a reversão no comércio da divergência, e o colapso da confiança nos bancos centrais, é esse o ciclo autoalimentado que os mercados agora enfrentam. Ação governamental pode ser necessária para rompê-lo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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