Folha de S. Paulo


Motoristas do Uber e trabalhadores da economia do frila se mobilizam

Kai Pfaffenbach/Reuters
Detalhe mostra o aplicativo Uber, para transporte de passageiros
Detalhe mostra o aplicativo Uber, para transporte de passageiros

Em setembro do ano passado, os motoristas do UberBlack, o serviço de carros de luxo do Uber, receberam um e-mail os informando de que teriam de começar a aceitar chamados do UberX, a opção de baixo custo da empresa.

No dia seguinte, quando a nova norma entraria em vigor, algumas dezenas de motoristas foram em carreata ao escritório do Uber no centro de Dallas e se postaram diante da empresa até que dirigentes da companhia saíssem para conversar com eles. Muitos dos motoristas haviam tomado empréstimos para comprar veículos de luxo com preços de US$ 35 mil ou mais, e se preocupavam com a possibilidade de que o modesto preço por quilômetro cobrado dos passageiros do UberX mal bastasse para cobrir a gasolina e desgaste dos carros, quanto mais o pagamento de financiamentos.

O impasse se estendeu por mais três dias tensos, até que o Uber permitiu que os motoristas optassem por não atender os chamados mais baratos se assim preferissem. "Eles pensaram que íamos desistir, que íamos recuar", disse Kirubel Kebede, um dos líderes do grupo. "Mas dissemos que não, que esse é o nosso ganha pão".

No rápido crescimento da economia do frila, muitos trabalhadores se sentem pressionados e ocasionalmente desumanizados por uma estrutura de negócios que promete independência mas muitas vezes os deixa à mercê de companhias cada vez mais poderosas. Alguns estão começando a se unir em busca de maior influência, e para garantir o que entendem como tratamento justo, da parte das plataformas que tornam possível o seu trabalho.

"Começamos por perceber que não somos prestadores de serviço; somos mais como empregados", disse Berhane Alemayoh, um dos motoristas do UberBlack em Dallas. "Eles nos dizem que tipo de carro temos de dirigir. Expulsam o motorista do serviço se o cliente se queixa de que o carro não estava limpo. Estão apertando cada vez mais as normas. Gradualmente, já não conseguimos respirar".

Talvez o esforço mais proeminente tenha sido um projeto de lei que dá aos motoristas ligados aos serviços online de carros o direito de formar um sindicato, em Seattle, aprovado pelo legislativo municipal em dezembro.
Mas embora muitas campanhas de trabalhadores alienados tenham rejeitado essa abordagem trabalhista mais tradicional, elas mostraram que existe uma base para defender coletivamente os interesses dos trabalhadores da economia do frila.

"Existe um senso de identidade no trabalho e de consciência de grupo, a despeito da insistência de muitas dessas plataformas em que elas não passam de 'mercados' ou 'praças' abertos para a mão de obra digital", disse Mary Gray, pesquisadora da Microsoft Research e professora na Escola de Mídia da Universidade de Indiana. Gray está conduzindo um estudo sobre os trabalhadores da economia do frila.

Os esforços dos trabalhadores vão bem além do Uber e de seu principal concorrente, o Lyft. Um grupo de mensageiros que obtêm trabalho por meio da plataforma Postmates está travando uma campanha para criar um botão de "depois dessa entrega, estou de folga", porque se preocupam que a recusa de trabalhos possa afetar o número de ofertas que receberão posteriormente. (Um representante da Postmates diz que recusar trabalhos não afeta as ofertas futuras, e que a companhia simpatiza com a ideia do novo botão.)

A Aliança Nacional de Trabalhadores Domésticos, que organiza babás e empregados domésticos, recentemente lançou o que chama de "Código do Bom Trabalho", e instou as empresas da economia do frila a adotá-lo.
"Pessoas eram enviadas a casas nas quais não se sentiam seguras, mas hesitavam em deixar essas situações por medo de que isso afetasse suas avaliações", disse Palak Shah, o dirigente da aliança que está comandando o novo esforço, mencionando uma das diversas questões que o código quer resolver. Algumas empresas, como a Managed by Q, LeadGenius e CareLinks, adotaram as normas propostas.

De modo semelhante, um grupo de trabalhadores da plataforma Mechanical Turk, da Amazon, onde pessoas postam anúncios oferecendo trabalhos avulsos e recebem ofertas para eles, em 2014 desenvolveram normas detalhadas - entre as quais pagamento recomendado e a necessidade de responder em prazo adequado a perguntas - para os acadêmicos que empregavam a plataforma para fins de pesquisa. Mais de 60 acadêmicos aceitaram as normas até o momento.

Ainda que os "Turkers", o nome pelo qual os trabalhadores que usam a plataforma são conhecidos, tendam a valorizar a flexibilidade e a independência do trabalho como freelancers, e muitas vezes rejeitem a ideia de um sindicato tradicional, muitos também começaram a se identificar como trabalhadores comuns.

"Já os ouvi dizendo que Jeff Bezos é o patrão e somos todos trabalhadores aqui", disse Niloufar Salehi, aluno de doutorado na Universidade Stanford que passou um ano frequentando os fóruns de discussão dos Turkers para ajudar os trabalhadores a se organizar.

Em contraste, os vendedores de produtos em mercados digitais como o eBay e Etsy raramente se consideram como empregados. Em sua interpretação, dizem, eles são mais artesão e lojistas autônomos.

"O Etsy é o lugar no qual a loja existe, o lugar pelo qual pago aluguel", disse Sandie Russo, veterana vendedora de acessórios e peças de tricô, e no passado responsável por um fórum online no qual vendedores ligados ao site se ajudavam a resolver problemas comuns. "Você é claramente um empreendedor, lá, não um empregado".

Como os lojistas do Etsy, muitos motoristas do Uber iniciaram seu relacionamento com a companhia se vendo como prestadores autônomos de serviços.

"Era essa a sensação, inicialmente", disse Harry Campbell, veterano motorista do Uber e operador de um blog e podcast muito populares sobre a vida de um motorista de aluguel. "Mas com o tempo, essa sensação se desgasta. Você começa a perceber que o Uber controla diversos aspectos do trabalho".

Ao contrário dos vendedores do eBay ou Etsy, os motoristas não podem determinar os preços que cobram. Também são restringidos pelo importantíssimo sistema de avaliação - se o motorista não conseguir manter média de 4,6 na escala de cinco estrelas que o serviço emprega para avaliação, ele corre o risco de ser excluído do Uber, em muitas cidades - e por isso precisam se comportar da maneira prescrita, o que inclui não tentar obter outros trabalhos junto aos passageiros.

A experiência dos motoristas do UberBlack em Dallas é reveladora. Quando o Uber começou a trabalhar na cidade, em 2012, muitos dos motoristas eram operadores independentes de carros com motorista para locação, ou prestadores de serviços a companhias de limusines que adquiriam ou arrendavam carros para que eles dirigissem.

"Alguns tinham negócios próprios, e estavam estabelecidos no negócio", disse Alemayoh. "Usavam o Uber só como complemento".

Os motoristas formaram uma aliança tática com a companhia a fim de ajudá-la a conquistar autorização das autoridades municipais, algo a que os operadores locais de táxis resistiam. Aleamayoh chegou a depor elogiando o Uber diante da Câmara Municipal de Houston, quando a companhia o convidou a viajar para lá e testemunhar, como parte de seus esforços de expansão. "Eu disse que era justo que os motoristas tivessem o Uber", ele recorda. "Falei em nome da empresa e não recebi para isso".

Mas o relacionamento começou a se deteriorar em 2014, quando o Uber decretou que motoristas com carros fabricados antes de 2008 não poderiam mais participar do UberBlack.

"Nós dissemos que eles estavam afetando muitas famílias", afirmou Kebede, líder de um grupo chamado Associação dos Proprietários e Operadores de Limusines de Dallas Fort Worth, formado no ano anterior. O Uber alongou por diversos meses o prazo de carência para a troca de carros, em muitos casos, mas não voltou atrás em sua decisão.

Quando o Uber promulgou sua norma sobre o UberX, em setembro, os motoristas já tinham reconhecido há muito que estavam completamente sujeitos às vontades da companhia. Por causa da popularidade do Uber, quase todas as suas demais fontes de negócio haviam secado. E o Uber havia conseguido aprovação do Legislativo municipal, o que tornava os motoristas dispensáveis na frente política.

Assim, foi com alguma surpresa que a associação de motoristas, que representa cerca de 500 dos dois mil a três mil motoristas dos carros de luxo para locação que acredita operarem na região de Dallas, conseguiu forçar o recuo no Uber não só quanto à norma do UberX mas na readmissão de diversos motoristas excluídos do serviço por pressionarem colegas motoristas a aderir ao movimento de resistência à empresa.

Alguns motoristas continuam a ser excluídos por razões que veem como arbitrárias, e que o Uber afirma não terem relação com os protestos. ("Os motoristas têm direito à liberdade de expressão, e nós o respeitamos", disse um porta-voz da empresa.) E um dos motivos para que os motoristas de Dallas tenham conquistado algum sucesso é que eles se organizaram por meio de contatos pessoais, em lugar de depender exclusivamente da Internet e mídia social.

Isso também ajuda a explicar o sucesso da campanha de Seattle, onde o Uber havia anteriormente revertido um corte de tarifas, por conta da pressão dos motoristas. (O Uber afirma que a reversão não aconteceu por causa dos protestos.)

"Os motoristas começaram a conversar entre eles", disse Dawn Gearhart, porta-voz do Teamsters, o sindicato dos trabalhadores dos transportes norte-americanos, na área. (O sindicato presta serviços de apoio aos motoristas locais.) "A cada vez que eles convocavam uma reunião, 200 pessoas apareciam".

Do começo do ano para cá, motoristas em cidades como Nova York, San Francisco e Tampa adotaram foco local semelhante para organizar protestos contra cortes de tarifas. Centenas de motoristas foram à sede do Uber em Queens, na segunda-feira, a fim de exigir que a velha tarifa seja restaurada.

Na área de Tampa, os motoristas protestaram contra cortes que reduziram a tarifa a 40 centavos de dólar por quilômetro na área de Tampa, a partir de janeiro, ante 60 centavos de dólar antes do corte e 75 centavos de dólar no segundo trimestre de 2015. O lucro do motorista pode ficar perigosamente próximo de uma remuneração abaixo do salário mínimo, em corridas com duração de entre 15 e 20 minutos dentro da cidade, se computados o tempo de espera e o custo da gasolina, depreciação e manutenção.

"Às vezes abaixamos os preços em uma cidade para atrair mais pessoas como usuárias do Uber", disse um representante da empresa. "Como sempre dissemos, os cortes de preços precisam funcionar para os motoristas. Se não funcionam, nós voltamos atrás".

Em resposta, os motoristas de Tampa começaram a se desconectar do Uber por uma hora ou duas, uma vez por semana, em períodos de pico de atividade noturna. Durante o período, eles escrevem nos para-brisas de seus carros mensagens sobre o que consideram remuneração insuficiente. O grupo logo se tornou uma rede de 700 motoristas que se comunicam por meio de um app chamado Zello, que funciona como um walkie-talkie.
O objetivo dos motoristas de Tampa é conquistar a adesão do ativo politicamente mais valioso da empresa-as legiões de clientes que dependem do serviço - a fim de enviar uma mensagem ao Uber. Com o tempo, eles esperam estender a desconexão para diversas horas, talvez até para um dia inteiro no final de semana.

"É só um pontinho no radar do Uber", disse Josh Streeter, um dos líderes. "Mas pode levar as pessoas a acreditar que elas têm poder. Que se agirem unidas, poderão realizar coisas maiores".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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