Folha de S. Paulo


Impeachment pode ser forma de destravar crise, diz Armínio Fraga

Mauro Pimentel/Folhapress
RIO DE JANEIRO, RJ, 11.11.2015: ENTREVISTA ARMINIO FRAGA - Entrevista exclusiva com o economista Arminio Fraga para a Folha de Sao Paulo. (Foto: Mauro Pimentel/Folhapress, FSP-MERCADO) ***EXCLUSIVO FOLHA***
Ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga

Com ou sem Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, o Brasil caminha para o "caos profundo" se não mudar de rota. O PT já desperdiçou sua chance e o impeachment —desde que dentro das regras— seria uma solução para destravar a crise, na visão do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga.

No curto prazo, todos os seus cenários são sombrios: o desemprego vai piorar, a inflação corre o risco de desgarrar-se na esteira do dólar, que ainda pode subir.

Para o economista, o país ainda não está barato o suficiente para compensar o risco de investir e, mesmo superada a crise atual, o crescimento não volta se não for equacionada a dívida pública.

Em duas horas de entrevista, as palavras "crise", "buraco" e "dívida" foram citadas 4 vezes cada uma, e 12 vezes falou-se de "problemas" —entre os principais, Estado inchado e produtividade baixa.

Foram 12 também as menções a "reformas", única saída sustentável na avaliação de Fraga: "Ou vamos mergulhar no caos profundo. É disso que estamos falando. Não é uma aspirina e um suco de laranja que vai resolver."

O economista, um dos formuladores do programa do candidato tucano Aécio Neves em 2014, foi incisivo sobre a necessidade de mudança política. "Chegou a hora. O PT fez essa lambança toda, imperdoável", afirmou, ao defender "uma nova liderança".

"Pessoalmente, preferia que fosse o PSDB, mas pode ser qualquer outra, desde que seja moderna."

Sem pronunciar nem uma vez o nome da presidente Dilma Rousseff —substituído por "ela", "a chefe dele [Levy]" e "para quem ele trabalha"—, Fraga diz que, apesar da atual crise política, existe uma janela para reformas mais amplas.

"Pode-se chegar a um ponto em que o medo domine e, se houver um mínimo de dignidade política e diagnóstico, pode ser que comece o processo."

Um "bom sinal", para ele, foi a apresentação pelo PMDB do documento "Ponte para o Futuro" (lançado em 29/10). O PMDB, aliás, foi citado pelo economista mais vezes que os tucanos: 3 X 2.

"Temos que mostrar que uma alternativa mais transparente e mais liberal, com um Estado melhor, é muito mais progressista que o que tivemos aqui. O modelo atual é um modelo saturado, um Estado que no fundo não atende aos mais pobres. Eles foram beneficiados, sim, com melhorias importantes, mas há um dinheiro enorme indo para outros lugares e sendo desperdiçado. Essa é uma boa briga política."

À mesa de almoço improvisada numa sala de reuniões da Gávea Investimentos, empresa que ele e seus sócios acabam de recomprar do JP Morgan, Fraga afirma que ainda não se "desintoxicou" da "nojeira" da campanha eleitoral e prefere não pensar na possibilidade de voltar à vida pública.

Usando várias vezes o termo "cardápio" para suas propostas de reforma (leia quais são ao final deste texto), ele elogia a comida preparada pela cozinheira de sua casa, que chega em malas térmicas: salada de alface com abacate, arroz integral, feijão, farofa com cebola, frango grelhado e batata doce corada. "Tudo orgânico."

*

Folha - Já batemos no fundo do poço?

Armínio Fraga - Não acredito, não. Infelizmente, até para estabilizar vai ser preciso trabalhar bastante. Não vou dizer que seja um poço sem fundo, mas não se corrigirá sozinho.

Existe solução econômica que não passe pelo fim da crise política?

Não.

E o fim da crise política virá como?

Precisa acontecer ao mesmo tempo um entendimento de qual é o cardápio, do que é preciso fazer, e um quadro político que permita essa tomada de decisão. Conscientização e execução.

O quadro hoje é caótico. Qual seria a solução? Há muitas possibilidades

A presidente fica? Não fica? É um caminho mais político? O próprio TSE? Difícil prever. Há muita coisa acontecendo com uma dinâmica própria.

É até bom que tenha mesmo.

Mas, em algum momento, é preciso que haja um grupo suficientemente coeso que faça essa aposta. Essa mudança recente de posição do PMDB, com a proposta, foi um passo importante.

O impeachment é uma solução?

Pode ser. Qualquer coisa que aconteça dentro das regras do Estado de Direito vale. O importante é ser feito assim, para que ninguém possa dizer que é golpe. E é assim que está acontecendo.

Se for isso, se os fatos em geral levarem nosso Congresso, democraticamente eleito, a tomar essa decisão, ou nosso TSE tomar uma decisão nessa área, que assim seja. Pode eventualmente contribuir para uma solução.

Mas não é algo em que se possa dizer "eu quero isso". Pode acontecer porque somos um Estado democrático, aberto, e as instituições vão funcionar, e, se for isso, que assim o seja.

Poderia, sim, poderia destravar alguma coisa, com certeza.

A crise política também é agravada pela espada da Lava Jato pairando sobre o Congresso...

Isso preocupa muito. Outro problema é que muitos ainda pensam que as opções são ou fazer o ajuste ou ser feliz. Isso é absolutamente falso.

Tem sido uma crítica recente do PT em relação ao Levy.

Sim, e pegou. Levy desde sempre não fez uma proposta ousada. Fez uma proposta modesta. Mas foi o que se mostrou possível, dado para quem ele trabalha.

Onde Levy deveria ter sido mais ousado?

As metas já eram desde o início muito modestas e muito específicas no tema fiscal. De lá para cá, só piorou.

Não nos esqueçamos de que, falando em fundo do poço, o buraco é muito mais profundo.

Em 2003, quando o PT chegou, a herança era de um saldo primário de 3,2% do PIB. Falam do "grande ajuste": foi de 3,2% para 3,3% do PIB, 0,1 ponto percentual. Como há uma piora vegetativa, podemos falar em ajuste de meio ponto do PIB. Mais ou menos o que está fazendo agora, só que a economia entrou num buraco, houve perda de arrecadação, os números pioraram.

Algum ajuste houve, mas depois de uma deterioração de quatro, cinco pontos do PIB...

Essa foi a herança que ela própria deixou para si mesma, e que Levy foi deixado a administrar sem poder mostrar que tudo o que está acontecendo foi obra da chefe dele.

Deu no que deu.

Faz-se algum aperto, sempre incomoda, mas é totalmente insuficiente e malfeito. Há muito pouco espaço de manobra.

Com juros altos e PIB caindo, a dinâmica da dívida vai ficar pior, não?

Sim, e, com um primário negativo [gastos públicos maiores que as receitas, exceto despesas com juros], as três peças dessa aritmética estão todas apontando na direção errada.

Isso deve levar à perda do grau de investimento por uma outra agência além da S&P. A perda seria muito negativa, ou o mercado financeiro já antecipou?

O mercado deu uma parada, está em compasso de espera. Houve também um certo alento lá fora, o tom mudou. Houve um movimento global de melhora recente que nos beneficiou. Mas não é uma solução. Nosso problema é interno. A situação lá fora ajuda ou atrapalha um pouco, mas não é decisiva.

O sr. propôs, em artigo, retirar todas as amarras do orçamento.

Sim, desvincular tudo, fazer um Orçamento base zero do governo.

Além, claro, de outras reformas, que, caso tivéssemos ido para o governo, acho que consertaria [leia ao final deste texto]. Dessa forma, se faz o ajuste, recupera confiança, muda de mão, muda de ar, e a economia se recupera.

Hoje estamos no pior dos mundos: não há recuperação nem ganho de confiança. Ao contrário, só faz piorar. E o Levy leva a culpa, o que é um certo exagero.

Mauro Pimentel 11.nov.2015/Folhapress
O economista Armínio Fraga, em seu escritório, no Rio

Qual o principal erro de Levy?

Ter ido para o governo.

[Pausa] O segundo erro foi não ter traçado uma linha divisória: "Se não fizer isto não adianta; chama outro, porque não vou ficar aqui enrolando".

O ex-presidente do BC Henrique Meirelles seria alguém que traçaria essa linha? Meirelles em vez de Levy faria diferença agora?

Resolver esta crise requer um entendimento profundo e realista da situação e um quadro político que permita que as reformas passem.

Nesse meio tempo, como pano de fundo, vemos esse pandemônio geral, um número enorme de lideranças tentando se safar, lideranças importantes, a própria presidente da República, o presidente da Câmara.

E mais: a presença do Lula, uma força gravitacional que afeta o comportamento de todo mundo. Não sei como esta equação se resolve. No curto prazo, nos próximos seis meses, parece muito difícil.

Mas não creio que as ideias de Meirelles seriam muito diferentes das ideias de Levy. Dez anos atrás já se falava que o gasto público não poderia continuar crescendo daquele jeito. E continuou, por mais dez anos.

Agora, estamos em um ponto em que a dinâmica da dívida passou a ser altamente relevante e muito preocupante.

A possibilidade de o Lula voltar é um problema?

Qual Lula que vai voltar, né? Depois de tudo o que aconteceu, tudo o que está exposto Ele decepcionou muito, em muitas dimensões. É muito hábil, se defende, mas é tanta coisa que aconteceu...

Se dependesse de mim, preferia que fosse alguém do PSDB, ou de algum outro partido, alguma liderança que surja. É melhor. Chegou a hora. O PT teve a sua chance, fez essa lambança toda, mais até política e ética do que econômica.

A econômica é uma pena, mas o resto é imperdoável.

Seria bom uma mudança.

Uma área em que a oposição perdeu o debate até agora é mostrar que uma proposta alternativa mais transparente e mais liberal, com um Estado melhor, é muito mais progressista que o que tivemos aqui. Esse debate até agora foi perdido, mas a chance agora existe.

Tem coisa melhor aqui. Bem melhor.

O modelo atual é um modelo saturado, um Estado que no fundo não atende aos mais pobres. Eles foram beneficiados, sim, com melhorias importantes, mas há um dinheiro enorme indo para outros lugares e sendo desperdiçado. Essa é uma boa briga política.

Mauro Pimentel - 11.nov.2015/Folhapress
O economista Armínio Fraga, em seu escritório, no Rio

Desse ponto de vista, a crise chega a ser favorável para a oposição, então?

Infelizmente, né? Espero que a oposição saiba demonstrar que tem propostas melhores, neste ambiente de populismo e demagogia, como o do ano passado.

O regime populista em geral não perde nas urnas. Ele quebra. Ainda mais com um líder carismático e inteligente como o Lula; é mais difícil ainda.

E ele tinha o que mostrar, justiça seja feita. O Lula 1 foi excelente. Foi em parte uma continuação do que vinha antes, mas isso não é demérito nem mérito. São ideias boas, testadas, que dão certo. É preciso mostrar que uma reforma que tire o Estado da mão de interesses privados e partidários tem um potencial distributivo enorme.

Está otimista ou pessimista?

Estou muito preocupado. Não gosto de falar em pessimista, porque há um viés. Analiticamente, vejo com enorme preocupação o que está acontecendo aqui.

O quadro econômico pode piorar bastante. E isso tem consequências sociais colossais, possivelmente de longa duração. Nada garante que o país não vai ficar cavando esse poço sem fim. Espero que pare antes de uma fase ainda pior que essa, ou mais prolongada.

O quadro está difícil.

Mauro Pimentel - 11.nov.2015/Folhapress
O economista Armínio Fraga, em seu escritório, no Rio

Reformas mais amplas, como as que o sr. propôs, não são mais difíceis numa crise como a atual?

Depende. Pode-se chegar a um ponto em que o medo domine e, se houver um mínimo de dignidade política e diagnóstico, pode ser que comece o processo de reforma. O próprio PMDB ter apresentado a proposta que eles apresentaram é um bom sinal.

Mas é o mesmo Congresso que anulou o fator previdenciário

Claro. Estou tentando preservar uma chama de esperança... [pausa] realista.

Não acredito que o Brasil tenha impedimentos estruturais, que não sejam passíveis de superação. Se você não tem uma perna e quer jogar futebol, é um problema estrutural seríssimo. O Brasil não tem nada disso. O que há somos nós, enquanto sociedade, com dificuldade em organizar nossa vida.

É possível voltar a crescer, mas o país acordou com um buraco fiscal enorme, uma dívida enorme e uma economia muito estragada. Isso requer uma resposta muito caprichada.

É preciso fazer o país voltar a se desenvolver, ou vamos mergulhar no caos profundo. É disso que estamos falando. Não é uma aspirina e um suco de laranja que vai resolver.

O caos profundo é o quê?

É isso que está aí. Estragaram a macroeconomia e a microeconomia. Do lado econômico, é isso. Do lado político, estamos vendo agora ao vivo e em cores, todo dia, uma situação horrorosa, uma doença espalhada por toda a parte, que está sendo processada pelo sistema. Esse é um lado bom. Mas precisa ser resolvido. E daí precisa surgir, provavelmente com uma reforma política, uma base política mais sólida para que se tenha um grupo no poder com uma visão de longo prazo para tomar as medidas.

Não adianta tomar pequenas medidas paliativas.

Há um grupo de pessoas que têm trabalhado em melhorias incrementais, para serem ajustadas aos poucos, em vez de grandes reformas. Há economistas trabalhando nisso...

Sim, e líderes empresariais também, mas acho que estão diminuindo em número. Ninguém pode ser contra melhorias, é melhor do que nada, mas hoje isso não resolve.

Não adianta aprovar a CPMF. Vai aprovar uma a cada três meses? Vamos ficar com um sistema tributário horroroso. Qual a vantagem? Não é por aí.

O fato de que a produtividade do Brasil está estagnada há muitos anos não é tão limitante quanto não ter uma perna?

É o meu ponto. Mesmo depois do ciclo -supondo que ele seja superado e que venha só um ciclo/crise-, há muitos problemas. Mesmo que se supere esse momento de incerteza e medo, nada garante que o país vai crescer do jeito que está. Ao contrário. Tudo indica que não vai.

O país precisa, primeiro, mobilizar mais capital e, segundo, ser mais produtivo. Fazer mais com menos. É uma mudança de mentalidade.

Tem que ter mais concorrência, mais integração, melhor alocação do capital, uma evolução ainda mais pronunciada no mundo da educação. As pessoas estão alfabetizadas, mas a realidade não é boa. O garoto tem seis anos de escola, mas não absorve a leitura.

Pelo menos existe esse debate no Brasil.

Aliás, o debate em geral existe. A mudança no PMDB, em particular, sugere que há possibilidade de uma articulação de ideias que superficialmente seriam um grande sacrifício -eu não acho que são; ao contrário, o sacrifício é ficar do jeito que está- e começam a ser viáveis até no meio político, que em geral opera com um horizonte de tempo mais curto.

Mauro Pimentel - 11.nov.2015/Folhapress
O economista Armínio Fraga, em seu escritório, no Rio

O sr. parece bem otimista com o PMDB.

Não. É que acho que foi, pode-se dizer, um pequeno passo. Mas foi. Merece registro. Sou pessimista de que isso vá ser posto em prática. Muito pessimista. Mas hoje o quadro é tal que a chance de isso acontecer é maior.

Exigiria uma mudança maior de concepção de Estado, modelo de economia?

Sim, foi um dos pontos do meu artigo. Este é um Estado gordo, corrupto, ineficaz e quebrado. Esse é o núcleo da questão. Mas as propostas do próprio PSDB, antigas, nossa proposta na campanha, talvez não tão detalhada, porque o momento não permitiu, o próprio PMDB sugerem que isso precisa acontecer.

Há um conjunto de medidas que seriam mais emergenciais, para estancar a sangria, afetar a dinâmica da dívida, as expectativas, e o início de reformas que vão desde lá do setor real, microeconômico, até reforma tributária, integração internacional, educação etc.

O Brasil já está barato o suficiente para compensar o risco de investir aqui?

De maneira genérica, não estou convencido. A taxa de juros está muito alta. Se descontar tudo usando os preços de mercado, diria que não.

Mesmo a taxa de câmbio: como o Brasil passou esses últimos cinco anos por uma perda muito importante de preço de exportação, principalmente, quase toda a depreciação do câmbio veio para compensar isso. Não seria impossível, num momento difícil mais para a frente, o câmbio depreciar bem mais.

A relação de trocas [relação entre preços de exportação e preços de importação] nos oito anos do governo Lula, que coincidiu exatamente com a valorização do câmbio, melhorou 45%. É um ganho enorme. Depois disso piorou o preço do petróleo, do minério de ferro, da soja. O câmbio reage muito a isso, a correlação é grande e há causalidade, não é um acaso.

Mas, perto dos problemas internos, não é tão relevante.

A inflação resistente mesmo com longo desaquecimento é sintoma de quê?

É sinal claro de falta de credibilidade na moeda.

Uma vertente dessa falta de credibilidade é a inflação, outra é o câmbio.

Vejo muitos investidores estrangeiros perguntando: o Banco Central vai aumentar os juros? Isso aqui não é uma discussão tradicional, de curva de Phillips [que relaciona desemprego e inflação]. O Brasil é outra coisa, esse arcabouço de análise não se aplica. Claro que é preciso segui-lo, mas não é só isso, pois está no meio de um contexto de risco enorme, enorme, enorme, bem claro.

Há risco de a inflação sair de controle?

Sim. Está alinhado ao câmbio. O câmbio a R$ 4 de 2002 hoje seria muito mais alto.

Espero que não aconteça, mas é possível.

O BC já comunicou que vai subir juros se a inflação não for em direção à meta em 2017.

Não tem muito jeito. O Banco Central tem que fazer o trabalho dele a essa altura do jogo. Mas não é fácil.

Está difícil subir mais os juros no momento? O Brasil está na chamada dominância fiscal [quando a piora nas finanças públicas limita o uso de juros para controlar a inflação]?

Sim, podemos até dizer que "está" em dominância fiscal. Mas o Brasil não "é" em dominância fiscal. Essas coisas podem mudar.

Mauro Pimentel - 11.nov.2015/Folhapress
O economista Armínio Fraga, em seu escritório, no Rio

O que é preciso para mudar?

Fazer as reformas profundas, para deixar o Banco Central trabalhar seguro.

O que o BC faz com o câmbio?

Sou totalmente a favor da flutuação.

Mesmo com a inflação um pouco desgarrada?

Sim. Parece que é muito ter de reserva US$ 200 bilhões -US$ 300 bilhões com um pedaço "swapado" [o BC tem feito contratos de "swap", que funcionam como oferta da moeda]-, mas não é tanto assim no mundo de hoje. Tabelamento artificial do câmbio não dá certo, e mudar o regime para basear em meta cambial já deu errado a vida inteira.

Há algumas semanas, com alta dos juros futuros, começou-se a falar em um risco de choque de crédito e quebradeira.

Está acontecendo já. As empresas já estão quebrando. O crédito secou, para alguns mais que para outros.

Mais para as médias?

Para as grandes, também. É geral. Estamos no meio do processo, ainda. Infelizmente, não terminou. Os balanços dos bancos públicos são menos transparentes, mas até essa encrenca ser processada e, espero, resolvida, muita coisa vai aparecer.

A taxa de desemprego está alta, mas as demissões ainda não aceleraram.

A tendência é piorar. É consenso no mercado que o ano que vem é de nova recessão. Não é um cálculo de engenharia, mas já se fala até em -3% outra vez. Há uma paralisia no investimento bastante grave. Já de algum tempo minha preocupação é que, do jeito que o país está, mesmo depois que esse ciclo se superar... e esse ciclo ainda tem uma dimensão de crise não trivial, em que não fazer nada não é empurrar com a barriga, empurrar com a barriga já exigiria muita coisa.

Se não houver uma mudança bastante radical em como essa economia funciona, não vai ter muito crescimento mesmo após o ciclo.

O quadro é desolador.

O Brasil tem problemas sérios do lado macroeconômico e também setoriais, microeconômicos.

Sem uma solução definitiva do lado macro, as taxas de juro continuam altas, a incerteza, a inflação voltou a ser um problema.

Do lado micro, há o exemplo do setor elétrico, que virou um caos. Não fosse a recessão, provavelmente estaríamos em racionamento.

No setor de petróleo, eles quebraram a Petrobras.

Nosso sistema tributário é outro problemaço.

E o Brasil está desconectado do mundo. Há uma depreciação do câmbio grande, mas, para um país desconectado, o impacto é muito menor. As empresas não se animam; o esforço que elas têm que fazer é muito grande.

Do que não falamos?

De um tema muito complicado, que é cenários. Não quero ficar imaginando cenários de crise e o que fazer a respeito, mas todos têm uma característica em comum: são todos muito difíceis, muito desagradáveis, e todos incluem um buraco fiscal e a perspectiva de que ele cresça junto com a dívida.

Sem mexer na trajetória da dívida, não tem jeito, mas seria também preciso mexer no resto, para que o crescimento volte. Todos os cenários de crise sugerem que algumas dessas peças não foram reposicionadas, o fiscal principalmente. Sem um saldo primário de 3% a 4% do PIB e uma redução do gasto como proporção do PIB, nada resolve. E, sem as reformas, o caminho é muita incerteza, menos investimento, gente indo para fora.

E por outro lado o sr. está recomprando seu negócio [a gestora de recursos Gávea Investimentos, da qual parte havia sido vendida à gestora do J.P. Morgan].

Sim, estou redobrando a aposta. Mas tenho medo. Não sou pessimista, sou até otimista nas minhas decisões, mas nem sempre as coisas tendem a dar certo.

E também seu ramo de negócios não tem barreira geográfica.

Sim, mas a parte importante do nosso negócio é investir no Brasil. Das duas áreas que vamos ficar, a maior é a de participações, em empresas do Brasil. Nossa carteira vai bem, mas é sempre melhor estar em um país que cresce do que em um que cai 3%. Agora, se não resolver o fiscal, o jeito é insistir no modelo que está aí. Porque o resto é uma aventura heterodoxa com um histórico longo no Brasil absolutamente unânime de fracasso. Não há espaço para nada muito diferente.

Mauro Pimentel - 11.nov.2015/Folhapress
O ex-presidente do BC, Armínio Fraga, em seu escritório no Rio

O programa de leilões de concessão é opção para criar um círculo virtuoso?

A ideia é boa e em tese tem chances de sair.

Mesmo sem o BNDES?

Alguma coisa o BNDES terá que dar. Se as regras forem bem desenhadas, o capital vem. Muita coisa é viável. Algumas não são tão viáveis mas valem a pena assim mesmo porque gera um ganho adicional que a empresa poderia capturar, como em casos de desenvolvimento regional, por exemplo.

Neste caso, estamos com o tanque vazio no momento, mas dá para fazer muita coisa. Parte do atraso no investimento em infraestrutura, que já chega a dez anos, tem problemas operacionais e parte é ideologia. A ideologia parece estar sendo superada pela adversidade.

Parece? Não está convencido?

Não, em muitos casos não. Mas falta também ainda a capacidade de execução. Isso demora. O Brasil perdeu muito tempo numa área que deveria ser a locomotiva, pela necessidade. E faz sentido licitar, para que o Estado possa se preocupar com outras coisas. Onde for o caso, regula. É bom que seja assim.

Os investidores estrangeiros já estão menos inseguros?

Nosso histórico com regras é razoavelmente bom. Houve um ou outro caso mais ou menos complicado, como o do setor elétrico, mas a regra tem sido que o contratado vale.

E o controle de preços?

Isso afeta também. O caso mais grave foi o do setor elétrico e combustíveis, que resvalou no setor de etanol. Está muito longe de ser o paraíso, mas ainda tem muito espaço para as concessões no Brasil e seria uma locomotiva extraordinária, porque tem muita necessidade, o que eleva a chance de acontecer.

O sr. defendeu também rediscutir a Constituição para transformar o Brasil numa economia de mercado, em que qualquer intervenção do Estado tivesse que ser justificada, com meta a ser cobrada.

Isso sinalizaria uma mudança de mentalidade, onde se adquire uma postura mais rigorosa em relação ao Estado, mas um pouco mais cética, também. Não sou um liberal radical, mas é saudável ser cético com o funcionamento do Estado. Como aliás, é saudável ser cético em empresas também.

Já que o Estado recolhe tanto, cobra tanto Não tenho uma meta específica de tamanho para o Estado, mas pelo menos é preciso pensar no assunto. Há países com Estado maior ou menor, mas os que dão certo têm um Estado bom, com igualdade perante a lei, preocupação em entregar o que se propõe.

No nosso caso teria que ter uma preocupação distributiva, pois continuamos muito desigual. Mas feita com espírito mais de buscar igualdade de oportunidades. É nisso que acredito. E exige ter mais concorrência, mais integração, um certo grau de simplicidade nas coisas, no sistema tributário, por exemplo.

Parece uma mudança tão grande quanto a reforma da natureza de Monteiro Lobato.

É um pouco, sim, mas pode estar ficando maduro. Seria um sinal.

Mauro Pimentel - 11.nov.2015/Folhapress
O economista Armínio Fraga, em seu escritório, no Rio

É possível num país muito desigual como o Brasil implantar uma competição de economia de mercado? Há igualdade de oportunidades para isso?

Não, claro que não. Nem perto. Esse é o problema.

Eu próprio não creio em uma ideia de Estado mínimo. Não me passou pela cabeça.

Mas hoje o Estado está crescendo sem parar, sem pensar no resultado. Sem reflexão, e com péssimos resultados.

Não defendo nada de muito radical. Vários de nós aqui temos falado há muito tempo da importância de aprender o funcionamento do Estado, avaliando, repensando, experimentando. Hoje se vê muito isso em algumas áreas.

Na educação, por exemplo, há discrepâncias muito grandes entre os resultados que as melhores prefeituras conseguem versus o que um número muito grande ainda consegue. Vamos olhar o que se faz lá em Sobral [CE], o que a [ex-secretária municipal da Educação] Claudia Costin fez aqui no Rio.

A Folha publicou no dia 12 um caderno sobre ilhas de excelência em educação no Brasil.

Acho isso fantástico, porque mostra que é possível. O Rio teve bastante sucesso nessa área, tanto na educação básica quanto no ensino médio, com o [secretário estadual da Educação, Wilson] Risolia e a equipe dele. Vem gente do país inteiro ver. Como eles foram a outros Estados ver o que se faz, a outros municípios. É bom estudar tanto casos de sucesso quanto os mais problemáticos. A gente aprende muito também com a análise dos casos de fracasso.

Não defendo uma obsessão com métricas, resultados, feita de maneira superficial. Pode e deve ser bem profundo. Mas é preciso ter disciplina, transparência, analisar como rotina. Se toda política pública, antes de ser posta em prática, já nascer pensando que terá que passar por avaliação, ajuda muito. No Brasil isso é muito pouco feito. Como agora, com o BNDES abrindo informações, isso é bom. Mais que bom, é imprescindível.

Há um consenso de que os governos do PT promoveram redução da pobreza e queda da desigualdade. Esse ganho pode se perder com a crise?

Acho que é preciso deixar esse experimento chegar ao fim para termos uma conclusão final. Espero que chegue, o mais rápido possível.

A parte de combate à pobreza, principalmente a extrema, foi muito bem-sucedida. Começou com Fernando Henrique, teve uma grande impulso do Plano Real e depois o presidente Lula turbinou esses programas com muito sucesso. A nova classe média teve ganho de renda também, mas não se sabe até que ponto foi sustentável.

Uma parte veio muito além do ganho de produtividade, o que impõe um limite.

E há trabalhos que mostram que uma parte importante das melhorias na pobreza e distribuição veio do próprio crescimento, que parou. Agora está caindo, mas já vinha muito pior que a região: nos quatro primeiros anos da presidente Dilma o Brasil cresceu 2%, a metade da América Latina.

Uma parte desse crescimento de consumo veio pelo crédito, o que é ótimo. Várias gerações de governo trabalharam para isso. Mas ancorar o crescimento do consumo no crédito tem limite, ainda mais com um crédito tão caro quanto o nosso.

As famílias ficaram saturadas, têm que pagar ao menos os juros, que são muito altos, o que é outro problema.

Em geral, a ênfase em distribuição, antipobreza, do PT veio para ficar. Já existia com o Fernando Henrique, que redirecionou o Estado e fez o que precisava no lado macro. Deu certo até um certo ponto. Mas agora estamos numa ressaca monumental. Vai ser preciso organizar a casa para voltar a essa trajetória.

O modelo de transferência é o mais eficiente para reduzir a desigualdade?

O modelo é bom para a pobreza, mas é preciso ter mais ênfase em igualdade de oportunidade e produtividade.

Igualdade de oportunidade inclui sistemas de cotas?

De forma limitada, sim. Mas há soluções melhores a longo prazo. As cotas são mais emergenciais. O ideal é ter educação pública decente para a maioria, saúde pública, vida urbana mais civilizada, com transporte público decente, praias e lagoas limpas. A cota é classicamente emergencial.

O sr. falou em melhoria na economia internacional. Está se referindo aos EUA?

Estava falando de uma melhoria no mercado.

Na economia, os EUA estão bem. A Europa, com o petróleo baixo e o câmbio mais fraco, também está melhorando, mas é uma sociedade mais madura, com outra demografia, outros objetivos. A Europa é um bem de luxo, se comporta de outra forma. Alemanha vai muito bem, mas Itália e Espanha, embora estejam se recuperando, estão longe de ter chegado ao ponto de antes da crise.

A China desacelerou e é um fator importante. E tem, claro, essa saída da política de juro zero nos Estados Unidos, próxima.

Espera para o mês que vem?

É o cenário mais provável.

O pêndulo no mundo já começou a voltar para uma visão mais liberal da economia?

Acho que não, ainda. A China está passando por um processo que tem uma dimensão de mercado. O desenvolvimento deles foi voltado para fora, mas há partes muito grandes da China ainda no modelo antigo, com estatais, bancos públicos e governos locais, um tripé cheio de problemas. Estão pagando o preço por isso agora.

O que acho que aconteceu, não é de hoje, foi uma mudança na direção de um mundo não tão róseo como o de [Francis] Fukuyama, de "Fim da História", em que o mundo teria chegado à conclusão de que a democracia, a sociedade e o mercado eram o único caminho.

Isso mudou. Houve a ascensão da China, com um regime autoritário e outros lugares, como a Turquia e a Rússia, dando sinais. São países grandes. Se pegamos os Brics, só falta Brasil e Índia. E aqui houve uma guinada dirigista claríssima, com certo esforço na área política também. O governo fez algumas tentativas de controlar a imprensa, e o modelo mais recente, a partir do mensalão, de corromper a democracia.
Isso é antidemocrático.

A partir da crise de 2008, que foi mais dos países desenvolvidos, tem havido mais protecionismo. A abertura comercial parou um pouco. Acho que a China vai acabar voltando ao mercado, mas não sei como será na política. Lá dentro, há muito debate. As pessoas não podem se organizar, mas nas universidades há muito mais debate do que se imagina.

George Gianni/Divulgação
O economista Edmar Bacha, a presidente do ITV-RJ, Elena Landau, o senador Aécio Neves, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o economista Armínio Fraga, em seminário no Rio

O sr. já se desintoxicou da campanha?

Não [risos]. Sou muito de bem com a vida, e não me arrependo de ter me dedicado boa parte do ano passado para ajudar o Aécio, mas não é da minha natureza estar permanentemente engajado nisso. Eu e meus sócios acabamos de recomprar nosso negócio. Ainda não foi concluído mas está em fase avançada. Tenho uma pequena vida acadêmica, estou trabalhando em dois ou três temas.

Está pesquisando que temas?

Taxa de juros. Um trabalho bem completo, histórico, do Brasil, com o professor Tiago Berriel, da PUC-RJ. É um tema enorme, e há pouco escrito sobre isso. Estamos fazendo um trabalho comparativo com outros países e olhando nossa história. Mas tem mais um ano pela frente ainda.

O sr. já esteve duas vezes no governo, voltou nas eleições passadas. Gosta da vida pública?

Se me perguntarem 'Você gosta de ficar indo para Brasília toda semana, indo e voltando', a resposta é não. Saio da minha zona de conforto. Mas alguma coisa aconteceu na minha vida que me meti nisso, e acho que é algo de que poucos têm a chance. Ter a chance de poder pôr em prática boas políticas e tentar fazer o país se desenvolver com D maiúsculo é gratificante. Considero que fui três vezes, porque passei o ano passado não só em campanha, mas preparando o governo.

Mas o ônus foi na campanha, não?

Tem o ônus de tempo, também. Eram 16 horas por dia.

Não foi o tempo que o intoxicou, certo?

Não, foi a nojeira da campanha, a mentirada geral, isso, sim. Que agora está exposta. Mas é muito frustrante, um horror.

Mas voltaria, num governo em que acreditasse?

Prefiro não pensar. Nessas coisas, para valer a pena, ao menos para mim, é preciso que os astros se alinhem um pouco, que haja condições de trabalho. E há muita gente qualificada no Brasil.

Nem se lhe derem a chance de implantar o seu cardápio?

Não sei. Não estou pensando nisso agora, não.

*

O CARDÁPIO DE ARMÍNIO FRAGA

Principais problemas apontados

  • Estado incompetente e endividado
  • Sistema tributário complexo
  • Aparato regulatório desprestigiado
  • Elevado grau de dirigismo
  • Claro desprezo pela eficiência em geral, e pelo mercado em particular
  • Isolamento do mundo
  • Má alocação do capital
  • Políticas setoriais mal desenhadas

Medidas emergenciais sugeridas

  • Metas de saldo primário de 1%, 2% e 3% do PIB para os próximos três anos, baseadas em premissas realistas e receitas recorrentes (as metas atuais não estão sendo cumpridas e, de qualquer forma, são insuficientes).
  • Aprovação da idade mínima de 65 anos para a aposentadoria de homens e mulheres (para gerações futuras) e reaprovação do fator previdenciário.
  • Desvinculação do piso da Previdência do salário mínimo (essa vinculação é cara e regressiva).
  • Introdução de um limite para a dívida bruta do governo federal como proporção do PIB.
  • Reforma do PIS/Cofins e ICMS já proposta, acrescida da unificação e simplificação das regras do ICMS (por muitas razões, inclusive a integração interna do país).
  • Mudança das regras trabalhistas também na mesa (onde o negociado se sobrepõe à lei).
  • Aumento da integração do Brasil ao mundo (um primeiro passo seria transformar o Mercosul em zona de livre comércio).

Medidas mais fundamentais relativas ao Estado:

  • Discussão sobre o tamanho e as prioridades do Estado (requer limite ao crescimento do gasto, o que, por sua vez, demanda as reformas abaixo).
  • Fim de todas as vinculações e adoção de um orçamento base zero (sem prejuízo de espaços plurianuais, nunca permanentes).
  • Meritocracia e a boa gestão no setor público.
  • Revisão da cobertura da estabilidade do emprego no setor público.
  • Revisão do capítulo econômico da Constituição (adotar a economia de mercado. Qualquer interferência do Estado deverá ser justificada e seus resultados, posteriormente avaliados).

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