Folha de S. Paulo


Diferenças culturais com colombianos são desafio para AB InBev

Francois Lenoir/Reuters
Logo da AB InBev em frente à sede da cervejeira em Leuven, na Bélgica
Logo da AB InBev em frente à sede da cervejeira em Leuven, na Bélgica

A América Latina muitas vezes é imaginada como um lugar culturalmente homogêneo, uma região de clichês, escrupulosa cordialidade e homens de bigode. Mas as coisas não são assim —como fica claro em um encontro no Brasil, quando vejo um empresário hispano-americano quase pular para o outro lado da mesa em protesto contra uma distração verbal de um colega brasileiro.

"Por que você ainda está pensando em termos de moeda brasileira e não de dólares dos Estados Unidos?", bufa Álvaro Saieh, bilionário chileno-colombiano, se rearranjando na cadeira.

"Continuamos a citar os valores de nosso balanço combinado em moeda local; força do hábito, creio", respondeu seu colega brasileiro Ricardo Villela Marino.

Próximos passos da fusão

Nem Marino e nem Saieh usam bigode, e parecem ambos rigidamente polidos um para com o outro, e não cordiais —sinal, talvez, das diferenças entre suas culturas nacionais ou corporativas, ou talvez de ambas as coisas. A rigidez parece particularmente estranha por os dois estarem em São Paulo a fim de celebrar a fusão de seus dois bancos —"seus" sendo a palavra chave nessa afirmação.

O Itaú, maior banco privado do Brasil e da América Latina, com capitalização de mercado de US$ 41 bilhões, é uma empresa sob controle familiar, e Marino é o descendente de uma das famílias fundadoras do banco.

O Corpbanca de Saieh, um banco chileno-colombiano que está se fundindo com a subsidiária chilena do Itaú, também opera sob controle familiar. Jorge Andrés, o filho de Saieh, outro homem sem bigode, também presente na sala, se tornará presidente do conselho do novo banco, que representa a mais recente adição ao crescente elenco de "multilatinas".

O termo se refere a companhias latino-americanas que cresceram para além de seus mercados de origem e se tornaram multinacionais. As aspirações pan-latinas dessas empresas fazem com que os consultores de gestão amem o termo "multilatina", apesar do histórico não muito positivo desse tipo de empresa.

Para cada América Móvil, a companhia mundial de telefonia controlada por Carlos Slim, ou AB InBev, a gigantesca produtora de cerveja sob comando brasileiro que está tentando devorar a SABMiller, há uma Latam. A empresa foi, por breve período, a maior companhia mundial de aviação por capitalização de mercado, quando a LAN, do Chile, anunciou, em 2010, sua fusão com a brasileira TAM. De lá para cá, o preço das ações da companhia caiu em mais de 80%.

Ou há o caso da Cemex, mexicana, em seu apogeu uma das três maiores produtoras mundiais de cimento, que quase faliu ao embarcar em uma onda de aquisições nos Estados Unidos e Europa pouco antes que os mercados de imóveis residenciais despencassem, em 2008.

Excesso de ambição, excesso de dívidas, decisões implementadas em momentos inoportunos —os problemas que usualmente atormentam muitas transações transacionais— são os responsáveis, em muitos casos. Mas, para surpresa de algumas pessoas, as multilatinas também podem sofrer de incompatibilidades culturais.

De fato, já surgiram sugestões de que diferenças entre as culturas nacionais ou empresariais da AB InBev e dos grandes acionistas colombianos da SABMiller, a família Santo Domingo, da Colômbia, podem ser um entrave para a fusão de 68 bilhões de libras no setor de cerveja para a qual acordo inicial foi obtido esta semana. (Os Santo Domingo também têm 3% de participação no Corpbanca.)

Ainda que o portunhol, uma mistura improvisada de português e espanhol, possa superar a maioria das barreiras linguísticas na América Latina, os brasileiros nem mesmo reconhecem o termo "América Latina".

A tendência introspectiva do Brasil e o persistente senso de otimismo de seus cidadãos quanto ao futuro, comparáveis ao que se vê nos Estados Unidos, um país igualmente grande, podem fazer com que o Brasil se sinta a um continente de distância dos países hispano-americanos, que muitas vezes se veem enredados em um senso trágico do passado.

"Somos menos diferentes do que você poderia pensar", diz Jorge Andrés Saieh. "As duas empresas são grandes, e gostam de fazer as coisas direito. Há mais semelhanças do que diferenças, e a maioria dessas diferenças são preconceitos, de qualquer forma".

Qualquer que seja o caso, a criação dessa multilatina financeira faz sentido comercialmente, no papel. O Itaú, como muitas empresas brasileiras, quer se diversificar fora de seu mercado de origem, e operar em economias de crescimento mais rápido, como as do Chile e Colômbia.

Para isso, desembolsou quase US$ 1 bilhão por uma participação minoritária controladora no grupo criado por fusões que controla todas as operações não brasileiras do Itaú na América do Sul. O Corpbanca, enquanto isso, precisa de mais peso financeiro para manter sua expansão regional: a divisão de varejo bancário do Itaú, por exemplo, compensa mais de 31 bilhões de transações ao ano.

O Brasil é um "mercado muito difícil", diz Saieh. "A não ser que você tenha um ótimo parceiro, obter bons resultados é complicado". Marino responde rapidamente: "Vemos o Chile da mesma maneira".

Os comentários são quase críticos, e uma vez mais ilustram os históricos nacionais muito diferentes dos dois. Marino, 41, que supervisionou a integração entre Itaú e Unibanco depois da fusão de US$ 60 bilhões entre os dois bancos em 2009, tem os olhos azuis, a pele bronzeada e a aparência esportiva dos clichês brasileiros.

Saieh, 66, tem origens mais variadas e mais empreendedoras. Dotado de dupla cidadania colombiana e chilena, o banqueiro de ascendência palestina cresceu na cidade de Valledupar, na costa caribenha da Colômbia —uma cidade de origens agrícolas famosa pelo vallenato, um ritmo musical aparentado ao blues. Parte da semimítica "Macondo", de Gabriel García Márquez, ela também é o único lugar em que este correspondente do "Financial Times" já viu um bêbado ser arremessado para fora de um saloon, seguido pelo seu chapéu de caubói, e cair na rua empoeirada.

Mas isso aconteceu 25 anos atrás, como conto a Saieh, que tem doutorado em Economia pela Universidade de Chicago e construiu um bilionário império bancário e de supermercados. "Sim, Valledupar é um lugar muito interessante", ele comenta secamente.

Com certeza não há como duvidar da argúcia comercial dos dois lados, expressa, pelo menos para o acordo em questão, na forma de um denso acordo de 52 páginas entre acionistas.

Cervejarias anunciam 3ª maior fusão da história - Divisão do mercado da cerveja, em %

Os cínicos poderiam acrescentar que o Itaú, que apontará o presidente-executivo do novo banco em virtude de sua participação acionária de 34%, fica com um terço dos lucros mas com todos os problemas operacionais do banco. E há muitos problemas à frente, pelo menos potencialmente. Um processo aberto por um fundo de hedge que rejeita a fusão e afirmava que o acordo prejudica os acionistas minoritários do Corpbanca foi rejeitado pelos tribunais.

Mas o ambiente econômico está se deteriorando rapidamente. O Brasil, abalado pelo escândalo de corrupção na estatal Petrobras, está sofrendo sua pior recessão desde a Grande Depressão, e a economia chilena, dominada pelo cobre, está sofrendo com a queda nos preços das commodities. Nos dois países, os protestos sociais estão crescendo e os índices de aprovação aos governos despencam.

"Todos os nossos países têm tantos problemas", suspira Saieh. "Ainda que isso não signifique que eles não tenham excelentes companhias, capazes de ganhar dinheiro".
Isso se aplica especialmente, ele assegura, a empresas sob controle familiar, como a dele.

"Nos bancos dos Estados Unidos e Europa, tudo muda a cada cinco anos. Isso não é bom para negócios voláteis: você nunca sabe quem é quem por muito tempo", diz Saieh. "Em nosso banco, em contraste, temos uma pessoa no conselho que de vez em quando recusa empréstimos porque tal e qual pessoa deu um calote em 1965. Encaramos as coisas em longo prazo".

Eis, por fim, algo sobre o que os dois parceiros podem concordar, instintivamente: a maneira pela qual o controle familiar pode ajudar a riqueza de ambos a crescer em meio aos frequentes ciclos de altos e baixos da América do Sul.

"Sim, estamos vivendo um ponto ruim do ciclo econômico", admite Marino. "Mas a recuperação virá, um dia, ainda que apenas para os nossos filhos".

Os três multimilionários sentados à mesa caem na risada diante desse pensamento reconfortante; é o primeiro riso genuíno da reunião.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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