Folha de S. Paulo


Modelo econômico da Grécia não se sustenta, diz ex-ministro português

Jin Lee - 23.mai.2011/Bloomberg/Getty Images
Ex-ministro das Finanças de Portugal, Fernando Teixeira dos Santos
Ex-ministro das Finanças de Portugal, Fernando Teixeira dos Santos

O modelo de Estado, de governança e de administração da Grécia —e também o modelo econômico— não é mais sustentável, diz um dos políticos europeus com mais experiência em crises e austeridade, Fernando Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças de Portugal em dois governos (2005-2011)

Em entrevista à Folha no Porto, sua cidade natal, Teixeira dos Santos afirma que se insiste muito nas medidas de austeridade do orçamento, "mas essencialmente o que importa é saber que tipo de modelo econômico a Grécia vai ter, quais serão os pilares do seu dinamismo econômico e a fórmula como vai, sob o ponto de vista institucional, se organizar no domínio da administração pública, da regulação dos mercados e das opções políticas nos mais variados mercados".

Para o ex-ministro, que estava no governo português quando, em 2011, Portugal pediu socorro financeiro à Troika (comitê formado pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional ), o novo pacote imposto à Grécia vai obrigar à adoção de medidas duras, mas o importante é restabelecer a confiança.

"Se não há confiança as pessoas não investem, não consomem. Continuam a ter medo do futuro."

Por outras palavras, é necessário "um certo click" por parte do governo grego, diz ele.

Mas não só. Considerando que foi positivo ter chegado ao atual acordo, o economista defende que a Grécia precisa de ajuda para vencer este desafio. E essa ajuda "passa, por exemplo, por um alívio da dívida".

Entenda a crise grega

Sobre o fato de que outros países que vêm fazendo sacrifícios para pagar sua dívida (entre os quais Portugal), o ex-governante responde que "não é uma questão de justiça".

O problema da Grécia não é exclusivo da Grécia, afirma. "Existe um problema de excesso de dívida na Área do Euro que tem que ser resolvido."

Para ele, a solução "não tem que ser caridade". Teixeira dos Santos se interroga se não faz sentido lançar, na Europa, um programa à semelhança do Plano Marshall (principal plano dos EUA para a reconstrução dos países aliados da Europa após a Segunda Guerra Mundial).

Durante a hora e meia de entrevista na Porto Business School, onde o ex-ministro coordena dois programas de MBA, o ex-ministro fez sempre questão de salientar que a situação portuguesa é bem diferente da grega, mas que o perigo de contágio é, no mundo dos mercados sempre eminente.

"Eu já vi esse filme em 2010", recorda.

À pergunta "poderá a teoria keynesiana do 'espírito animal' ajudar a explicar o que se passou?", o doutorado em Economia pela Universidade da Carolina do Sul (EUA), responde que "de alguma forma foi o que se passou quando os mercados perceberam que a Zona do Euro não estava preparada para lidar com a situação grega".

Sem esconder sua preocupação quanto ao futuro, Teixeira dos Santos considera que a Grécia não está livre de sair do Euro e que, se isso acontecer, poderá ser o início do fim.

"A desagregação do Euro acabará por ser a desagregação de todo o projeto da União Europeia."

Aos 63 anos, Teixeira dos Santos, que já é avô, sugere que é necessário repensar a Europa e responder aos desequilíbrios regionais.

Segundo ele, existe hoje "um vazio em nível europeu que tem permitido que as agendas políticas nacionais acabem por se sobrepor e dominar as preocupações europeias".

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Para onde é que caminha a Grécia?

Há uma grande incerteza. Existe um modelo de Estado, de governança e de administração da Grécia -e também um modelo econômico- que claramente deu mostras de não ser mais sustentável.

Se insiste muito, publicamente, nas medidas de austeridade fiscal -mais ligadas com o desequilíbrio orçamental e com o nível da dívida, que são questões importantes.

Mas essencialmente o que importa é saber que tipo de modelo econômico a Grécia vai ter, quais serão os pilares do seu dinamismo econômico e a fórmula como vai, sob o ponto de vista institucional, se organizar no domínio da administração pública, da regulação dos mercados e das opções políticas nos mais variados mercados -desde a energia às telecomunicações ao mercado laboral.

Tudo isso terão que ser opções obviamente políticas dos gregos. Numa Europa que visa uma forte convergência, também dos seus mercados, essas decisões terão que passar por um modelo que esteja devidamente articulado com aquilo a que se pode chamar de modelo econômico europeu.

Mas, para que esse futuro exista não tem que existir algum desafogo? Estarão os gregos de pés e mãos atados pela Alemanha?

Para já é preciso colocar o doente saudável. Creio que a Grécia está bastante debilitada. Poderá nem estar com energia suficiente para ela própria, por si, ser capaz de levar a cabo todas essas mudanças.

Mas com toda a certeza existe uma série de desequilíbrios na economia grega que têm que ser corrigidos e ultrapassados.

Compreendo as observações que sempre se fazem à Alemanha. Mas a Alemanha mais não é do que porta-voz de um certo modelo de integração europeia. Se analisarmos bem, a Alemanha não esteve a falar sozinha nestas negociações com a Grécia. Muitos outros países têm tido uma postura crítica relativamente à Grécia.

A Alemanha, pela dimensão e influência que tem, acaba por ter essa visibilidade, mas não está isolada.

Como encara este novo pacote imposto à Grécia, mais austero que o proposto antes do referendo?

Vai obrigar à adoção de medidas duras sobre o ponto de vista orçamental. Mas o que é fundamental neste momento não são as medidas em si, mas, sim, saber se com o anúncio deste pacote e com a sua implementação conseguiremos ter um pilar que permita perceber que a Grécia se está reconstruindo, se recompondo, ganhando alguma confiança e restabelecendo suas relações financeiras de forma a criar um novo clima econômico.

Como é que isso se faz?

Considero que acima de tudo é uma gestão política que está relacionada com um certo 'click' que o Governo tem que fazer com os cidadãos e com os agentes econômicos.

Neste campo, os parceiros europeus têm que secundar também a esse esforço. Têm que sinalizar aos gregos e aos investidores em geral que podem apostar na Grécia e que vamos ter, a partir de agora, um quadro de estabilidade.

Porque, se com este programa não se conseguir transmitir essa ideia, é difícil estabelecer confiança. E, se não há confiança, as pessoas não investem, não consomem. Continuam a ter medo do futuro.

A Grécia corre o risco de sair do euro?

Eu acho que ainda não está livre disso.

Foi positivo ter chegado a este acordo, mas para que a Grécia não saia do Euro é preciso que aquilo que foi acordado seja cumprido. E isso não depende só da Grécia. A Grécia precisa de ajuda para ser capaz de vencer este desafio.

Essa ajuda passa por...?

Passa, por exemplo, por um alívio da dívida. Mas passa também por ter de seus parceiros um apoio importante em reformar a economia e as suas instituições.

Mas isto tem que ser desejado pela própria Grécia num ambiente de confiança, que tem que ser restabelecido. E precisamos restabelecer, de fato, um espírito de cooperação que não tem que ser caridade. Não é isso que se quer.

Assim como houve na Europa, no pós-guerra, o Plano Marshall, que ajudou a Europa a se colocar de pé, me interrogo se não faz sentido, em nível europeu, pensarmos em definir instrumentos e meios que permitam definir para os países mais debilitados programas importantes de mudança à semelhança de um programa Marshall. E não tem que ser imposição. Os países têm que poder se apropriar desses programas na implementação, mas podendo contar com o apoio de seus parceiros.

Quais são as variáveis mais importantes quando se analisa um país?

Sobre o ponto de vista financeiro sem dúvida que é o peso da dívida. E a Grécia de fato tem uma dívida elevadíssima de perto de 180% do PIB. Pessoalmente, creio que a Grécia terá muitas dificuldade em cumprir o programa que agora foi acordado se não tiver um alívio dessa situação.

Esse "perdão" é justo para os restantes países que fizeram "sacrifícios"?

Acho que o problema da Grécia, sendo um problema com uma maior dimensão na Grécia, não é um problema exclusivo da Grécia. Só 5 dos 19 países que hoje fazem parte da Zona do Euro têm uma dívida abaixo dos 60%. Dos restantes 14 países, 8 têm uma dívida acima de 90% -alguns acima dos 100%, como Bélgica, Itália, Portugal e Grécia).

Perante isso, existe um problema de excesso de dívida no Euro que tem que ser resolvido. Eu vejo uma solução de alívio à dívida grega num quadro de solução global da dívida europeia.

Não é uma questão de justiça. Nós temos um problema político na Zona do Euro relacionado com a solidez da união monetária. Tem mais: encaro isso numa estratégia de crescimento do Euro, da economia do Euro.

Porque a imagem que costumamos dar é que quem tem uma mochila tão pesada às costas dificilmente poderá andar depressa. Se nós queremos que a economia do Euro tenha outro dinamismo, outro crescimento, este peso da dívida é algo que dificulta esse crescimento.

O que pode acontecer ao Euro se a Grécia sair?

Tenho muito medo que o Euro possa entrar numa crise muito séria. Em 2010, achávamos que havia uma crise que tinha a ver com a Grécia. E nos achávamos muito diferentes dos gregos. Mas vimos o que se passou com Portugal.

A partir do momento em que numa situação de crise deixamos cair um dos membros do Euro, não estou certo que os mercados não procurem atacar o próximo elo fraco. E já temos na imprensa internacional vários artigos que vem apontar o dedo a Portugal.

Meu receio é que os mercados, de um momento para o outro, num cenário de eventual saída da Grécia do Euro, se virem para Portugal.

Eu já vi este filme em 2010. Meu receio é que possamos ter um remake desse filme.

A saída de Grécia seria abrir um procedente em que passaríamos a ter uma nova forma de resolver problemas na Zona do Euro: que é sair do Euro.

Faz algum paralelismo entre a crise grega e a portuguesa?

Há muitas diferenças. O único ponto de contato está relacionado com o contágio que houve, e, também, pelo fato de que ambas foram deflagradas por uma situação bastante grave das finanças públicas, que resultaram numa situação de agravamento em 2009 e 2010.

Embora no caso português a crise tenha sido a expressão dos efeitos de uma crise global com impacto nas nossas finanças públicas, no caso da Grécia foi isso mais um comportamento de mascarar e esconder a verdadeira situação.

Nisso Portugal se diferencia da Grécia. Os portugueses, apesar de tudo, transmitem uma percepção clara de que têm instituições e uma administração que funciona com know-how, saber e capacidade de preparar, discutir e implementar um programa desta natureza. Sentimento que não existiu na Grécia.

Poderá a teoria keynesiana do "espírito animal" ajudar a explicar o que se passou?

Os chamados 'animal spirits' têm que ver com os comportamentos muitas vezes exuberantes dos agentes econômicos, suscitados por mudanças significativas nas suas expectativas quanto ao futuro.

Eventos, notícias ou até mesmo rumores, na medida em que alterem tais expectativas, podem ocasionar mudanças bruscas e repentinas no seu comportamento, nas suas decisões.

De alguma forma, foi o que se passou. Durante muito tempo os mercados não equacionaram a possibilidade de um default soberano [calote da dívida pública]. Mas, quando perceberam que a Zona do Euro não estava preparada para lidar com a situação grega, passaram a encarar tal eventualidade como muito provável. A sua reação foi muito forte. Avaliaram a situação grega como a mais grave, mas depois passaram a considerar que o problema existia para outros países, como Portugal.

De qualquer modo, o risco de default grego foi sempre considerado maior que o português.

E à Europa, o que lhe vai acontecer se a Grécia sair do Euro?

Eu vejo um cenário de desagregação europeia. A desagregação do Euro acabará por ser a desagregação de todo o projeto da União Europeia.

É o início do fim?

Eu acho que é o início do fim.

Como é que a Grécia chegou a esta situação social, política e financeira?

Independentemente de todo o histórico passado da Grécia e da sua dívida bastante elevada já denotar uma fragilidade estrutural das suas finanças e da sua administração pública, houve, ao longo desta última década, a manutenção e a perpetuação de um desequilíbrio externo da Grécia também muito financiado pelo exterior.

E essa situação está relacionada com um problema que afetou não só a Grécia mas também outros países da periferia -entre os quais Portugal.

Essa situação existe desde o lançamento do Euro -e a participação, em particular, da Grécia no Euro nunca foi uma situação suficientemente alarmante quer em termos das políticas nacionais, quer em termos das preocupações de coordenação da política econômica europeia.

Por quê?

Porque passou um pouco a ideia de que, na ocorrência desses desequilíbrios nacionais externos (num quadro de uma moeda única com integração dos seus mercados financeiros, onde o capital circulava facilmente entre as várias economias), o deficit de um país era coberto quando existia superavit dos outros.

Portanto, existia aqui uma ligação cruzada de financiamento em que os mercados de capitais acabariam por suprir, ou corrigir, esses desequilíbrios através do financiamento. Mas em boa verdade essa situação está na origem do acumular de dívida nos países da periferia, dívida essa que, no quadro da crise de 2008, serviu de catalisador para uma reação muito forte dos mercados e de grande preocupação quanto à sustentabilidade e à capacidade dos países pagarem as suas dívidas. E que gerou toda esta instabilidade.

O efeito bola de neve?

Exato. O efeito bola de neve. Creio que foi a constatação de que o euro ao fim ao cabo era uma obra ainda inacabada, onde claramente não dispunha dos mecanismos de correção e resolução de crise que preocupou e desestabilizou ainda mais os mercados.

Isso não seria de prever? A partir do momento que estamos a falar de realidades diferentes onde é aplicada a mesma política monetária?

Eu acho que agora é fácil de afirmar que seria de prever. Eu não estou tão certo disso. Vou lhe disser por quê. Normalmente -e isso é o que nos ensina a teoria econômica- se nós queremos ter uma zona monetária, com uma moeda única, tem que existir uma forte convergência real das economias, em termos de nível de produtividade, de competitividade. Tem que haver acima de tudo, também, grande mobilidade dos fatores, do trabalho e do capital, no seio dessa área de união monetária.

E isso não era claramente ainda a figura da área do Euro e, se assim não é, isso obriga a que haja instrumentos orçamentais que sejam capazes de suprir e de responder aos desequilíbrios regionais que diferenciam as economias existentes.

Mas isso não foi tentado?

Foi tentado mas não há instrumento. É muito fraco. O orçamento comunitário não chega a 1% do PIB comunitário. É uma coisa muito pouca. Não é a bazuca que hoje se fala do BCE. Está longe de ter esse poder.

E os fundos europeus?

Os fundos europeus foram importantes no lançamento de alguma políticas estruturais e especialmente de infraestrutura nos vários países, mas não têm esse poder de estabilização macroeconômica e de apoio a políticas estruturais mais profundas. A par do pilar comum monetário que temos precisamos de um pilar orçamental comum. Um instrumento de política orçamental a nível comunitário.

Sugere uma ajuda mais democrática?

A ajuda tem que ser mais do que uma imposição a quem está aflito. Tem que existir num espírito de cooperação, em que os países, eles próprios, tomam a iniciativa de avançarem com programas, que são discutidos internamente, que têm o apoio dos seus parceiros e onde existe o espírito de apropriação. O programa é nosso, não é um programa que nos seja imposto como condição seja para o que for.

Creio que a Europa tem que dar um salto depois de tudo isso que se passou com a Grécia.

Precisamos evoluir para estabelecer um ambiente entre os países europeus que permita de fato avançar com soluções.

Estarão as agendas nacionais com mais peso do que a europeia?

Eu não posso condenar nenhum político por estar preocupado com a sua agenda política interna, em termos nacionais, de forma alguma. As democracias também assim o obrigam.

O que me parece é que entramos numa dinâmica política europeia nos últimos anos, onde a agenda política nacional se tem vindo a sobrepor a qualquer desígnio definido pela agenda política global a nível europeu.

Portanto se sente um vazio a nível europeu que tem permitido que as agendas políticas nacionais se acabem por sobrepor e dominar as preocupações dos políticos.

Sentiu isso enquanto ministro?

Senti isso claramente.

Falamos da necessidade de um novo modelo de política europeia?

Eu acho que isso está muito relacionado com o modelo de política europeia. Eu me interrogo: até que ponto é que é possível conseguirmos desenvolver um projeto europeu -e uma política europeia- com agentes de decisão e de governança europeus, que são os mesmos que estão envolvidos na governança nacional, com os objetivos nacionais. Isso estabelece aqui uma tensão e uma contradição em que alguma das partes tem que perder.

Está otimista quanto à Europa?

Já estive mais otimista do que estou agora. Aquilo que temos vindo a assistir ultimamente em termos de processos de decisão europeia -e de construção de consensos estratégicos- não é um bom sinal, e isso me deixa preocupado. Mas também tenho consciência de que a Europa já viveu outros momentos de crise e que os ultrapassou e acabou por evoluir. Não sei se isso vai acontecer desta vez. Mas o ambiente que temos vivido não é um ambiente que alimente grande otimismo.

Não sei se, infelizmente, isto tem que ficar ainda pior para que possa vir a melhorar.

Tira alguma lição do que está a acontecer na Europa para o Brasil?

O que eu vejo acima de tudo é a importância de um reforço dos mecanismos de prevenção. É importante que se monitore bem a economia e se detecte, o mais cedo possível, o aparecimento de sinais de desequilíbrios que podem ser importantes, quer no setor financeiro, no imobiliário, no mercado de capitais, em termos externos e de evolução do endividamento.

Tudo deve ser monitorado pelas agências governamentais para ter um bom quadro de acompanhamento da economia com sinais de alerta. Um bom sistema de supervisão e regulação é muito importante. E é isso que nós aprendemos.

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  • RAIO-X - TEIXEIRA DOS SANTOS

Idade: 63 anos

Formação: doutorado em economia pela Universidade da Carolina do Sul (EUA)

Carreira: ex-ministro de Estado e ex-ministro das Finanças de Portugal em dois governos (2005-2011); coordena dois programas de MBA na Porto Business School; recebeu neste ano a mais alta condecoração da República Portuguesa


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