Folha de S. Paulo


Após 14 anos de escravidão, empreendedor aprende a ler e abre LAN house

André Romeu/Folhapress
O alagoano Geraldo José da Silva, que trabalhou em condições análogas a escravidão, foi resgatado em 2011 e hoje é dono de LAN house

Resumo
Por 14 anos, o alagoano Geraldo José da Silva trabalhou em condições de escravo numa usina. Resgatado em 2011, entrou pela primeira vez na vida numa sala de aula. Aprendeu a ler, a escrever e a trabalhar como pedreiro. Na construção da Arena Pantanal, juntou dinheiro e, com a ajuda da mulher - a seu lado há 18 anos-, virou empreendedor. Em sua LAN house, três computadores ligados à internet fazem sucesso.

Lá em União dos Palmares (AL), onde nasci, para conseguir sobreviver, era preciso ajudar a família -e cedo. Comecei a trabalhar na roça aos nove anos. Meus outros sete irmãos também começaram na labuta ainda crianças.

Meu pai não tinha estudo, mas tinha força. Foi com ele que aprendi a cortar cana.

Não pude ir à escola, porque ficava longe do sítio onde morávamos. E nem podia, já que eu tinha que trabalhar.

Quando completei 18 anos, em 1985, recebi a proposta de um agenciador, o "gato", para ir trabalhar na Alcopan, uma usina de cana-de-açúcar em Mato Grosso, no Chumbo (distrito de Poconé).

A proposta era que eu teria carteira assinada, um salário, atualizado nos dias de hoje, maior do que R$ 1.000, alimentação, assistência médica e alojamento.

Parecia um bom negócio. Como não tinha perspectiva de vida na minha cidade, resolvi ir -nem lembro quanto paguei, mas era muito pra mim. Pensava que nada poderia ser pior do que a situação em que eu estava.

CATIVEIRO

Cheguei a Mato Grosso e logo percebi que a situação era bem diferente daquela que o "gato" havia prometido.

Assinaram a carteira, mas me puseram numa casinha com outras 17 pessoas. Não tinha espaço pra nada, molhava quando chovia e só tinha um chuveiro. O cheiro do lugar era horrível.

E o salário, só me disseram quando cheguei lá, dependia da produção. Para conseguir tirar R$ 500, R$ 600 por mês, tinha que cortar, em média, 500 metros de cana por dia. Era dureza. Para conseguir isso, tinha que acordar às 4h, parar pra almoçar 15 minutos e voltar à roça.

A gente almoçava ali mesmo na roça. Era sempre quase a mesma coisa: arroz, uma carne picada e, de vez em quando, uma salada.

Eu vivia cansado, me machucava o tempo todo -não havia equipamento decente para trabalharmos.

Foi então que o pagamento começou a atrasar. Primeiro, um, dois meses, depois três, quatro, até mais de seis. Não tinha mais como ficar lá.

Já se passavam quatro anos desde a minha chegada. Juntei o pouco que tinha e fui embora, para trabalhar em outra usina, em São José do Rio Claro (250 km de Cuiabá). Mas a história se repetia e voltei para o Chumbo. Nessa propriedade, fiquei, entre idas e vindas, mais de 14 anos.

Um dia, apareceram vários carros com policiais armados e fiscais. Viram onde dormíamos, o que comíamos e disseram que iriam nos libertar. Falaram que éramos uma espécie de escravos.

LIBERTAÇÃO

Foi quando recebi o convite para passar por treinamento remunerado por seis meses, no Projeto Ação Integrada. Pela primeira vez na vida fui tratado de forma digna. Passei a receber um salário mínimo, ganhei alojamento e comida decentes.

O mais legal foi que, pela primeira vez, entrei numa sala de aula. Aprendi a escrever, a ler, mas ainda preciso melhorar bastante. Aprendi a profissão de pedreiro. Aprendi a falar direito. Fui trabalhar na construção da Arena Pantanal.

Na arena trabalhei durante dois anos e meio e foi muito bom. Em alguns meses, ganhava quase R$ 4.000.

Foi então que percebi que, se você é pobre e tem a oportunidade de ganhar algum dinheiro, tem que pensar em como usá-lo para continuar ganhando mais, porque é muito difícil. Hoje, você tem emprego, dinheiro, amanhã pode não ter mais nada.

Na época em que trabalhei na arena, com a ajuda da minha mulher, com quem sou casado há 18 anos, fui me estruturando.

Nós temos uma casa no Chumbo. Aos poucos, fui melhorando a horta. Cultiva hortelã, alface, cebolinha, alho-poró, pimenta, couve, tudo orgânico. Isso é só o começo.

Também fizemos algumas adaptações na casa. Aqui funciona uma videolocadora, xerox e temos três computadores com acesso à internet. O pessoal gosta muito de internet. De vez em quando rola até sessão de cinema também. Muita gente tinha que sair daqui para ir até Poconé fazer essas coisas.

A ideia agora é crescer mais, de pouco em pouco. De vez em quando faço bicos. Um dinheirinho a mais nunca é demais. Quero continuar evoluindo, aprendendo. Não tem nada no mundo que não seja possível, só depende de força de vontade, e de pessoas dispostas a ajudar.


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