Folha de S. Paulo


análise

Tecnologia tende a acabar com a classe média, diz economista

Huis Ten Bosch - 16.jul.2015/Efe
Recepcionistas robôs recebem hóspede no Hotel Weird, em Sasebo, Nagasaki (Japão).
Recepcionistas robôs recebem hóspede no Hotel Weird, em Sasebo, Nagasaki (Japão)

Em 1983, o economista norte-americano Wassily Leontief, premiado com o Nobel, fez uma previsão, na época, chocante. Ele disse que era provável que as máquinas substituíssem o trabalho humano mais ou menos da mesma maneira que o trator substituiu o cavalo.

Hoje, com mais de 200 milhões de pessoas desempregadas no planeta —30 milhões a mais do que em 2008—, as palavras de Leontief já não parecem mais tão alienígenas quanto no passado. De fato, resta pouca dúvida de que a tecnologia já está em meio ao processo de transformar completamente o mercado mundial de trabalho.

É certo que previsões como as de Leontief despertam o ceticismo de muitos economistas, e com boa razão. Historicamente, ganhos de produtividade raramente resultaram em destruição de empregos. A cada vez que as máquinas propiciaram ganhos de eficiência (o que inclui a substituição dos cavalos pelos tratores), velhos empregos desapareceram mas novos empregos foram criados.

Além disso, economistas trabalham com número, e os dados recentes mostram uma desaceleração - e não uma aceleração - no crescimento da produtividade. Quando o assunto é o número efetivo de empregos disponíveis, existe motivo para questionar as previsões sombrias dos pessimistas.

Mas também existem razões para pensar que a natureza do trabalho está mudando.

Divulgação
O ator Charles Chaplin em cena do filme "Tempos Modernos" (1936), dirigido por ele mesmo

FIM DA ROTINA
Para começar, como aponta o economista David Autor, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), os avanços na automação do trabalho transformam mais alguns empregos do que outros.

Os trabalhadores que executam tarefas rotineiras como processamento de dados correm cada vez mais risco de substituição por máquinas, mas aqueles que se dedicam a trabalhos mais criativos têm maior probabilidade de ver avanços em sua produtividade.

Enquanto isso, os trabalhadores que oferecem serviços pessoais podem não ver grande mudança em seu trabalho.

Em outras palavras, um robô pode roubar o emprego de um contador e aumentar a produtividade de um cirurgião, mas não afetará o emprego de um cabeleireiro.

As perturbações resultantes na estrutura da força de trabalho podem ser no mínimo tão importantes quanto o número real de empregos afetados. Os economistas definem o resultado mais provável desse fenômeno como "polarização do emprego". A automação cria empregos de serviços no sopé da pirâmide de salários, e aumenta a quantidade e a produtividade dos empregos no alto da pirâmide. Mas a porção central do mercado de trabalho se esvazia.

Esse tipo de polarização vem acontecendo nos Estados Unidos há décadas, e agora também na Europa —com consequências importantes para a sociedade.

CLASSE MÉDIA

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a classe média serve de espinha dorsal à democracia, engajamento civil e estabilidade; as pessoas que não pertencessem à classe média podiam aspirar realisticamente a se tornar parte dela, ou até acreditar que já o eram mesmo que não fosse esse o caso. Mas à medida que as mudanças no mercado de trabalho destroem a classe média, uma nova era de rivalidade pode ser deflagrada (se é que já não o foi).

Além das mudanças causadas pela automação, o mercado de trabalho está sendo transformado por plataformas digitais como o Uber, que facilitam transações entre consumidores e fornecedores individuais de serviços. Um cliente que chama um carro do Uber está adquirindo não um serviço, mas dois: o da companhia (a conexão com o motorista, cuja qualidade é confirmada por avaliações de usuários) e o do motorista (transporte de um local para outro).

O Uber e outras plataforma digitais estão redefinindo a interação entre consumidores, trabalhadores e empregadores. Também estão tornando redundante o célebre modelo de empresa da era industrial - uma instituição essencial, que permitia a especialização e reduzia os custos de transação.

Adriano Vizoni/Folhapress
Taxistas durante manifestação no final de junho, em frente à Câmara de São Paulo, contra a atuação do aplicativo Uber
Taxistas durante manifestação no final de junho, em frente à Câmara de São Paulo, contra a atuação do aplicativo Uber

A GUERRA DO UBER

Ao contrário do que acontece com uma empresa tradicional, o relacionamento do Uber com seus motoristas não depende de um contrato tradicional de trabalho. Em lugar disso, o software da empresa age como mediador entre o motorista e o consumidor, por uma comissão.

Esse mudança aparentemente pequena pode ter consequências abrangentes. Em lugar de ser regulado por um contrato, o valor do trabalho fica sujeito às mesmas forças de mercado que abalam qualquer commodity, com os serviços variando de preço a depender da oferta e procura. O valor do trabalho passa a flutuar de acordo com o movimento do mercado.

Outras mudanças, menos perturbadoras, como a ascensão do capital humano, também poderiam ser mencionadas. Número cada vez maior de jovens formandos descartam empregos aparentemente atraentes em grandes empresas e optam por ganhar muito menos trabalhando em startups ou em setores criativos.

Embora isso possa ser explicado em parte pelo apelo do estilo de vida associado a esses postos, também pode representar uma forma de elevar o potencial de ganho do trabalhador ao longo de sua vida profissional.

Em lugar de alugar suas capacitações e competências por preço predeterminado, os jovens formandos preferem maximizar o potencial de renda que podem derivar de seu capital humano ao longo da vida de trabalho.

Uma vez mais, esse comportamento solapa o contrato de emprego como instituição social básica e torna menos eficientes alguns dos traços associados a essa prática, como a tributação anual de renda.

Não importa o que pensemos sobre os novos arranjos, é improvável que consigamos detê-los.

Alguns podem se sentir tentados a resistir —um exemplo são os recentes confrontos entre taxistas e motoristas do Uber em Paris, e os processos contra a empresa em muitos países.

NOVAS INSTITUIÇÕES

Os arranjos do Uber podem ser fraudulentos de acordo com a estrutura legal existente, mas essa estrutura um dia mudará. O impacto transformador da tecnologia um dia se fará sentir.

Em lugar de tentar impedir aquilo que não é possível impedir, deveríamos pensar sobre como colocar essa nova realidade a serviço de nossos valores e bem estar.

Além de repensar as instituições e práticas vinculadas aos contratos tradicionais de emprego —como as contribuições de previdência social—, precisaremos começar a inventar novas instituições que aproveitem essa transformação propiciada pela tecnologia em nosso benefício coletivo. A espinhal dorsal das sociedades do amanhã, afinal, não será formada por robôs ou plataformas digitais, mas pelos seus cidadãos.

JEAN PISANI-FERRY é professor da Escola Hertie de Administração Pública, em Berlim, e no momento serve como comissário geral de planejamento político do governo francês.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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