Folha de S. Paulo


Situação na Grécia demonstra crise cultural da Europa, diz sociólogo

A Europa teve um projeto diferente do norte-americano. Mas virou um continente submisso aos EUA em política externa e econômica. É esse contexto que a Grécia escancara hoje, na avaliação do sociólogo Marcos Roitman. "A crise grega é uma crise cultural da Europa", afirma.

Doutor em política e sociologia e professor titular da Universidade Complutense de Madri, ele avalia que a Grécia é "o paradigma de como atuam os grandes mercados: não se importam que aposentados percam sua aposentadoria, que hospitais tenham sido fechados, que gastos sociais sejam cortados. Tanto faz: estão ganhando".

Para ele, não é certo considerar que a situação grega transbordará politicamente para outros países europeus. "Isso é extrapolação. Tem a ver com a articulação do medo e com a criação de descrédito em relação à Grécia. Na história há processos sociais e políticos, não modelos", analisa.

Chileno radicado na Espanha, Roitman, 59, diz que na Grécia de hoje está sendo jogada uma nova concepção de Europa, mais coletiva, democrática e cidadã. "É um ponto de inflexão", define.

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Para onde vai a Grécia?

A Grécia é paradigmática. Representa, em termos amplos, o que tem sido o desenvolvimento do capitalismo desde a Segunda Guerra Mundial. A política na Grécia esteve articulada às grandes famílias Papandreu [esquerda] e Karamanlis [direita], que configuraram os dois grandes partidos que levaram o país à dinâmica da incorporação do país à União Europeia e à OTAN. Foi um papel dentro da recomposição estratégica de segurança dos EUA após a Segunda Guerra Mundial. Um papel subordinado também do ponto de vista econômico, com a ênfase no turismo. Isso levou à situação que temos hoje: um país dependente. A Grécia é um bom exemplo de um país latino-americano.

Qual a origem da crise?

Essa crise atual é fruto das políticas de austeridade que foram adotadas por sua elite política, impossibilitando autonomia e soberania. As grandes fortunas gregas quase não pagam imposto e a maioria foi para a Suíça e outros países. Parte da crise grega tem a ver com os grandes empresários que especularam com a situação. Ganharam nesses dias com a crise grega o que não ganharam nunca em anos. A Grécia é o paradigma de como atuam os grandes mercados, o capital transnacional. Não se importam que aposentados percam sua aposentadoria, que hospitais tenham sido fechados, que gastos sociais sejam cortados. Tanto faz: estão ganhando. O "não" do referendo é pela dignidade. A crise grega é o ponto de partida do que pode sofrer a Europa se forem mantidas as condições da "troika" (grupo de credores gregos formado por FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu).

Há comparação da situação atual com a que viveu a Argentina, com o corralito?

O Banco Central Europeu, que emite o dinheiro, sequestra um país e o impede de ter esse dinheiro. Não é corralito. Na Argentina foi totalmente diferente. Lá houve uma desvalorização do peso em relação ao dólar, o que significou a impossibilidade de saques de dólares para fazer a reconversão para pesos. Na Grécia, não há reconversão. Há pressão, uma negativa do BCE de dar dinheiro a um país que tem essa moeda. Usar o termo corralito revela uma ignorância total sobre o que acontece na Grécia.

A Grécia deve ceder?

As grandes multinacionais e os meios de comunicação dizem que a Grécia tem que aceitar a humilhação. Os grandes beneficiários da crise são os bancos. A crise grega é uma crise cultural da Europa. De um continente soberano e com um projeto internacional distinto dos EUA, a Europa virou uma região submissa aos interesses dos EUA, tanto em questões de política externa de segurança quanto em política econômica.

A Grécia deve deixar o euro?

É outro maniqueísmo. A Grécia nunca quis sair do euro. O que o governo grego quer é outra forma de entender a Europa: mais solidária, comprometida com as políticas públicas que rompam com a dinâmica da austeridade, que gerem outras condições de trabalho, de emprego, de vida. Na Grécia se está jogando uma nova Europa, uma concepção de Europa coletiva, cidadã, de direitos humanos, de democracia, que hoje não é. A Grécia, nesse momento, é um ponto de inflexão.

A saída não é tudo ou nada. Em todo o diálogo e negociação há concessões. O povo grego deu uma resposta às condições impostas pela Europa, pela Alemanha e França. 100% das ajudas que os gregos recebem vão aos bancos. É uma loucura. A Grécia está mostrando o caminho do que deve ser uma outra Europa, a dos povos, cidadã. Aquela que tentou construir um projeto democrático, de igualdade social e de justiça com o Estado de bem-estar social, que ao menos significava um ponto de inflexão em relação ao capitalismo selvagem do século 19.

O caso grego pode transbordar politicamente para outros países europeus, como a Espanha?

Isso é extrapolação. Tem a ver com a articulação do medo e com a criação de descrédito em relação à Grécia. Assim como não se pode transladar a situação do Brasil para outro país latino-americano, também não se pode transportar mecanicamente a da Grécia para outro país europeu. A Grécia tem sua própria estrutura, uma história condicionada pelo desenvolvimento imposto pelas grandes famílias que controlaram o poder após a Segunda Guerra. Por um partido comunista e com os partisanos que são únicos no mundo na história da luta contra o nazismo. Isso explica hoje a força que tem o partido comunista grego, independentemente de sua posição política. Essas coisas não se podem transladar mecanicamente. Nem Juscelino Kubitscheck se pode transladar à Europa.

Mas em outros países, como a Espanha, também surgiram fortes movimentos antiausteridade.

Na história há processos sociais e políticos, não modelos. A Espanha saiu de uma ditadura franquista de 40 anos. Não é comparável. Há elementos comuns. Grécia e Espanha estão na União Europeia, estão submetidas à OTAN, têm o euro, são primário-exportadores, não têm desenvolvimento industrial, ainda que existam diferenças, pesos diferentes entre países. Mas não há nada que seja transladado, salvo, evidentemente, a criação do medo. A direita diz: "Cuidado, cuidado, que aqui vem o lobo". Mas o lobo chegou aqui na Espanha. Significa milhões de desempregados, jovens sem trabalho, cortes de salários, perdas de direitos, saúde e educação piores, milhões de pessoas que foram desalojadas por não têm como pagar uma casa. Na Espanha o que está sendo jogando é a reinterpretação de seu passado, o que foi a república, a guerra civil, o franquismo.

O perdão de parte da dívida, como aconteceu com a Alemanha depois da guerra, seria uma saída?

Sim. Cancelamento de parte da dívida, moratória, renegociação de juros. Há outros exemplos, além da Alemanha, como Itália, Japão. Os EUA fizeram bônus após a Segunda Guerra. Não é medida excepcional. É preciso frisar que é o capital financeiro que realmente se beneficia do resgate.

O sr. espera uma solução positiva para o caso?

Os grandes centros de poder não se definem no âmbito da política, lamentavelmente. Por isso a política perdeu a centralidade. A política hoje está subordinada ao capital financeiro, bancário e especulativo. Para eles, não se joga nada na Grécia. Não vão mudar sua lógica de agir. Mas para nós, é um ponto de inflexão, um "basta". Mas esse "basta" precisa de uma articulação política. É preciso ter um horizonte de mudança. A esquerda não deve se caracterizar por gerir crises, mas por sair da crise e pedir um mundo ético, com valores de igualdade, justiça social, diretos humanos, trabalho, moradia. A grande batalha é defender o planeta. No horizonte histórico que se avizinha, seguir depredando é a morte do planeta e a extinção da espécie humana. Esse é o perigo. É a lógica do "salve-se quem puder, mas eu primeiro". Mas o futuro não está desenhado.

Como avaliar, nesse contexto, a economia internacional?

Há um controle absoluto dos grandes centros especulativos financeiros, que decidem no âmbito da política, das políticas públicas, sociais. O resultado são as políticas de austeridade e uma ordem cada vez mais desigual e injusta, onde estão em perigo não só a vida das pessoas, mas também a natureza, o planeta.

O capitalismo está em crise?

Não. Está no auge absoluto. O capitalismo foi capaz de superar suas crises, mudou. Nessa mudança, arrastou o conjunto da vida. Não se pode dizer que Bill Gates ou Carlos Slim estão em crise. O que está em crise é a concepção de trabalho, de justiça social, de direitos humanos. Isso afeta as pessoas. Cada vez há mais violação de direitos sociais, inclusive de trabalho. As reformas de flexibilização do trabalho estão eliminando esse direito, que era o único direito. Capitalismo e exploração seguem juntos. Capitalismo e democracia nunca andam juntos.

Mas não há movimentos fortes de contestação pelo mundo todo?

Cada vez há mais exploração, um maior grau de escravidão, uma submissão à autoexploração. A dinâmica do capitalismo faz com que as pessoas rebaixem suas próprias condições de vida. É um êxito do capitalismo. Não temos problema em aceitar uma exploração maior. Temos problema quando não consumimos. As pessoas protestam porque não têm o último celular. Se há dinheiro para consumir, está bom.


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