Folha de S. Paulo


Luta por direitos trabalhistas deve envolver outros setores, defende sociólogo

Michael Burawoy é um intelectual peculiar. Para fazer suas pesquisas sociológicas, ele trabalhou em uma fábrica de móveis na Rússia, uma mina em Zâmbia, uma metalúrgica na Hungria, uma oficina nos EUA. Buscou conexões entre a labuta cotidiana e as pressões de interesses econômicos e políticos.

Reflexões sobre essa heterodoxa trajetória profissional, recheadas de discussões acadêmicas, estão em "Marxismo Sociológico", livro que será lançado na próxima terça, 26, na USP, com a presença do autor, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA).

Em entrevista à Folha, Burawoy, 67, fala da crescente precarização do mercado de trabalho pelo mundo. Na sua visão, os trabalhadores precisam pressionar o Estado e buscar apoios em outros setores da sociedade para lutar contra o desmantelamento de direitos.

Conhecido pela obra "Manufacturing Consent" (1979), o sociólogo britânico presidiu a Associação Internacional de Sociologia. Marxista, ele declara: "O papa é uma das forças mais radicais no mundo de hoje".

Folha - No livro "Marxismo Sociológico", o sr. fala de ondas de mercadorização. A primeira aconteceu no século 19; a segunda, da Primeira Guerra Mundial até meados dos anos 1979. Hoje estaríamos numa terceira onda, que provoca enormes desigualdades. Essa onda vai durar ou movimentos sociais serão capazes de mudar a tendência de concentração de riqueza?

Michael Burawoy - Essa é a pergunta de um milhão de dólares! Abre uma série de outras questões também bem complicadas. Haverá uma onda sustentável de movimentos sociais? Se houver, qual será o seu efeito: promover a mercadorização ou se opor a ela? Os movimentos terão o sentido de fortalecer ou enfraquecer a democracia? Nos últimos cinco anos temos visto uma onda de movimentos sociais conectados globalmente com características regionais definidas, mas que lutam nas esferas políticas nacionais. Para mim, a oposição à terceira onda de mercadorização precisa ter uma organização em escala global. Por isso é um projeto difícil. Podem haver movimentos sociais que não revertam a mercadorização destrutiva, mas a fração hegemônica de uma classe capitalista mundial. Nesse caso, o resultado pode ser a intensificação do totalitarismo global que dissolverá as formas de democracia restantes. Como cientistas sociais devemos ter os olhos abertos para todas as possibilidades e não simplesmente escolher a mais desejável. Isso requer pessimismo intransigente e recusa ao derrotismo.

Ao analisar as relações de trabalho em diferentes tempos e lugares, o sr. diz que houve uma erosão na proteção do trabalho. Essa esta questão está sendo debatida hoje no Brasil. Como forças sociais poderão enfrentar a pressão para a desregulamentação do mercado de trabalho?

O trabalho organizado está na defensiva em todo o mundo. De outro lado, a precariedade está subindo na estratificação hierárquica e fortalezas estão sendo construídas para conter a alta da maré. Em alguns lugares, os trabalhadores organizados estão começando a ver a luz e procuram aliados entre os outros grupos afetados pela mercadorização _a commoditização das terras, do ar, da água, do dinheiro e do conhecimento. Há também uma insularidade sobre a auto-defesa do trabalho. Em lugar de forjar alianças com outros grupos, fazem compromissos prejudiciais com o capital a fim de reduzir a velocidade da erosão do trabalho. Vamos ver como os trabalhadores brasileiros vão lidar com as últimas ameaças à sua segurança.

Quando o livro trata de Chicago, onde o sr. trabalhou como operário, surgem os efeitos nocivos da desindustrialização. O Brasil vive um processo precoce de desindustrialização. Como um país da periferia capitalista pode enfrentar esse fenômeno?

Temos que pensar no desenvolvimento do capitalismo como desigual e combinado. Quando Chicago se desindustrializou nos anos 1980, a manufatura se moveu para outras partes do mundo. O capital se vinga, faz ameaças de sair se o custo do trabalho não cair. Assim, o Estado trabalha para manter o capital e faz uma ofensiva contra o trabalho, desmantelando seus ganhos duramente conquistados. O capital dita os termos para o Estado. Mas é preciso ter cuidado: o Estado não é um objeto singular, mas é, em si, uma relação, um terreno de luta de diferentes interesses, à esquerda e à direita. Ele só vai defender os interesses dos trabalhadores se sentir a pressão dos trabalhadores e de seus aliados. Não creio que o trabalho possa lutar por conta própria.

Em um texto recente ("Facing an Unequal World"), o sr. analisa os discursos do papa Francisco e do economista Thomas Piketty. Como evolui o debate sobre a questão da desigualdade no mundo?

O papa é uma das forças mais radicais no mundo de hoje. Na sua Exortação Apostólica de 2013, fez uma crítica radical ao capitalismo, ao mercado, à mercantilização como forma de pisotear os direitos humanos e fazer exclusão dos frutos do capitalismo. É um ataque impertinente ao capital financeiro. Qual é o apoio que ele pode reunir para seu manifesto anti-capitalista, ou quão longe ele pode levar a Igreja Católica em direção a uma visão mais esclarecida de questões sociais?

Já Thomas Piketty fez uma análise exaustiva da tendência cada vez maior à desigualdade _como se isso fosse uma lei de ferro do capitalismo. Se o Papa se concentra em processos de exclusão social, Piketty se preocupa com a inclusão desigual na economia de mercado. O grande sociólogo Karl Polanyi (autor de "A Grande Transformação") fornece a base de casamento entre os dois. Alguma coisa importante deve estar acontecendo no mundo para um católico e um economista condenarem o capitalismo.

Como o sr. analisa o estado atual dos movimentos sociais de esquerda e direita no mundo?

Karl Polanyi (1886-1964) salientou a importância de reações de direita à mercadorização. Escrevendo em 1944, argumentou que o fascismo foi a resposta protecionista para a superexpansão do mercado. No final, pensou que o futuro do mundo seria uma luta entre o socialismo e o fascismo; entre a expansão da liberdade e da democracia, de um lado, e a sua diminuição, no outro. De forma modificada, podemos ver essa luta em toda a Europa hoje. É difícil dizer quem está ganhando. Talvez essa não seja a pergunta certa. Talvez se deva pensar sobre o efeito de uma ou outra tendência ganhando. Como é que Syriza no poder vai lidar com a pressão esmagadora do FMI, do Banco Europeu, da Europa? Será capaz de relaxar as medidas de austeridade ou será forçado a mergulhar a Grécia em mais uma falência econômica, e, dessa forma, nutrir apoios para a direita? Por outro lado, há governos de direita, como na Hungria, que conseguem manter poder e legitimidade, desacreditando a esquerda. Será porque são preparados para ser mais cruéis e enganosos do que os social-democratas? Estou sugerindo que os governos de direita podem ser mais auto-sustentáveis do que os governos de esquerda, que são mais auto-destrutivos. O caso do Podemos, na Espanha, é instrutivo: o apoio popular afundou dramaticamente como ele entrou na competição eleitoral. Em última análise, o destino da esquerda e dos movimentos de direita não pode ser dissociado dos legados políticos nacionais, assim como de sua resposta à destrutividade do mercado.

O sr. disse que foi uma ilusão acreditar que a crise econômica iniciada em 2008 iria desencadear fortes movimentos contra o sistema capitalista. O capitalismo financeiro segue mais forte. Ao mesmo tempo, aconteceram protestos variados. Qual é o resultado dessas disputas políticas? É possível ter uma análise global sobre tendências?

Sim, sou culpado de otimismo infundado. Achei que a coincidência entre a eleição de um presidente liberal nos EUA e profunda crise econômica levaria a um movimento contra a mercadorização, seguindo um padrão semelhante ao que ocorreu na Grande Depressão sob Roosevelt. Mas eu estava errado. Obama rapidamente selecionou assessores que reequilibraram o capitalismo por meio do fortalecimento -no lugar de enfraquecimento_ do capital financeiro. Fizeram um grande pacote de socorro. Havia alternativa: a nacionalização dos bancos. Mas isso foi considerado fora do reino da possibilidade política. O menor movimento em direção à regulação estatal do capital provoca acusações de descrédito, apontando socialismo ou comunismo. Vimos um fiasco semelhante na tentativa de Obama de introduzir o seguro de saúde. Além disso, as crises econômicas não levantam por si só a questão sobre as causas do domínio do capital. Ao contrário, elas são o instrumento para a reestruturação e consolidação do capitalismo. Foi o que aconteceu. As finanças não só se recuperaram, mas aprofundaram seu poder global. É importante perguntar se isso resultou de um fracasso de liderança ou se os desafios da atual terceira onda de mercadorização são diferentes dos da segunda. Essa terceira pedia soluções globais, enquanto a segunda pode ser contida com projetos nacionais, como o New Deal.

O Brasil vive hoje um período de turbulência política. Qual é a sua opinião sobre o que acontece aqui?

Não posso dizer nada sobre o Brasil. Conheço a África do Sul. Lá, a aliança entre o Congresso Nacional Africano (CNA), a federação sindical e o Partido Comunista está se quebrando. Grandes frações do movimento sindical estão saindo, especialmente após o massacre de mineiros em Marikana em 2012. Há agora um movimento para a criação de um partido alternativo de trabalhadores, com seguidores da linha marxista-leninista. Há também uma frente unida abrangendo uma diversificada gama de movimentos e organizações de oposição. Claro que o CNA não é como o PT, mas as diferenças fazem levantar a questão de saber se um partido progressista deve procurar assumir o poder, por meio de eleições ou revoluções. Serão tais partidos e movimentos mais eficazes fora de governos, atuando como forças organizadas de compensação da sociedade civil?

Lembro-me de a estratégia do Solidariedade polonês (1980-1981), que foi pioneiro na ideia da "revolução auto-limitada". Significava a recusa da tomada de poder por medo do comprometimento de seus princípios democráticos. O movimento foi eficaz em organizar os trabalhadores nos estaleiros de Gdansk, exigindo que o governo viesse negociar com os trabalhadores e transmitindo as reuniões ao vivo. Na era da terceira onda da mercadorização, os partidos de esquerda devem pensar duas vezes antes de tomar o poder se quiserem se manter fiéis aos seus princípios. Se tomam o poder devem promover, em vez de desmobilizar, os movimentos sociais. Isso é que vai mantê-los honestos e torná-los responsáveis??perante os seus princípios. Deixo para os leitores decidir se isso se aplica ao Brasil.

Como você vê o futuro da China e da Rússia?

O caminho da Rússia foi revolucionário e teve como objetivo destruir a ordem soviética o mais rapidamente possível. Havia a suposição de que uma economia de mercado iria crescer espontaneamente, já que o Estado soviético tinha sido dissolvido. Conhecido como terapia de choque, provou ser só choque para todos (exceto para muito poucos) e nenhuma terapia. Por sua vez, o Estado chinês não tentou cometer suicídio. Agarrou a análise histórica de Polanyi de que não pode haver nenhuma estrada de mercado para o capitalismo de mercado. Em outras palavras, o capitalismo exige o suporte de instituições jurídicas e econômicas que incentivem um caminho de evolução, no qual o Estado não é destruído (como na Rússia), mas se torna o incubador de um capitalismo de Estado _que cresceu tão rapidamente quanto a economia russa diminuiu. Na verdade, a estratégia da Rússia tomou um caminho involutivo, um processo de desacumulação primitiva, uma forma de capitalismo mercantil em que o mercado destrói a economia.

Estas duas estratégias divergentes levaram a diferentes geopolíticas. A China se concentrou na expansão econômica e seus investimentos podem ser encontrados em toda a Ásia, América Latina e África, bem como os EUA, onde cobre os déficits crescentes e inunda o mercado consumidor com produtos baratos. Pelo contrário, a Rússia, com sua economia esclerosada, tem uma estratégia geopolítica que desafia EUA como o poder político supremo. Desde a era Putin, que impôs um regime autoritário, o Estado russo tem se desenvolvido como uma potência política mundial. Se a legitimidade do Estado chinês está baseada no seu poder econômico e na expansão do consumo, a legitimidade do Estado russo é alicerçada em seus apelos nacionalistas. O esforço de cada Estado para a supremacia global embora em diferentes esferas é baseado em reações muito diferentes para os distintos desafios econômicos nacionais colocados pela terceira onda de mercadorização que tomou conta do mundo.

"Marxismo Sociológico"
AUTOR Michael Burawoy
EDITORA Alameda
QUANTO R$ 49 (348 págs.


Endereço da página: