Folha de S. Paulo


Autor vê opressão 'kafkiana' em leis tributárias brasileiras

Com 18 prefácios de especialistas, cinco anos de pesquisas e quase três quilos, "Kafka, Alienação e Deformidade da Legalidade" é um tijolaço editorial arremessado contra as distorções do sistema tributário brasileiro.

O objetivo do autor, Eurico de Santi, coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas, é demonstrar que o governo "flexibiliza a legalidade, usando a máquina fiscal com o objetivo obsessivo de arrecadar mais".

Para tanto, o livro mapeia as estratégias de deformação da legalidade, que, ao gerar insegurança jurídica, prejudicam o ambiente de negócios no país.

A evocação do ficcionista tcheco Franz Kafka (1883-1924) é justificada. Com seu realismo fabulador, o au-
tor de "O Processo" criou um universo em que o cidadão comum é oprimido por estruturas burocráticas que lhe são incompreensíveis, da mesma maneira que a realidade jurídica brasileira sufoca o contribuinte.

Para Santi, "só mesmo o espanto de Kafka pode mostrar essa manipulação de servidores públicos que, no lugar de servir ao contribuinte, guiando-o na correta interpretação da lei tributária, trabalham em sentido contrário, fomentando a indústria do contencioso tributário".

Reprodução
O escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), autor de
O escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), autor de "O Processo"

O uso da expressão "indústria" é autorizado por um estudo que indica que o contencioso tributário no Brasil chega a ser 50 vezes superior ao padrão mundial. É equivalente a cerca de 11% do PIB, enquanto a média nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é de 0,2%.

O contencioso é induzido por uma miríade de normas que Santi teve a pachorra de contabilizar. "Nos últimos 22 anos foram editadas, em média, 46 normas tributárias por dia. Em média, cada norma tributária tem 11 artigos. Cada artigo tem dois parágrafos, sete incisos e uma alínea. Assim foram editados, nesse período, 2,7 milhões de artigos, 6,5 milhões de parágrafos, 20,8 milhões de incisos e 2,7 milhões de alíneas."

COMPARAÇÃO

A comparação com o sistema tributário americano é francamente desfavorável ao Brasil. Lá, diz Santi, prevalece a possibilidade de acordo entre fisco e contribuinte em diversas fases do processo administrativo.

Além disso, nos Estados Unidos o auto de infração reflete a posição do órgão governamental, e não de um fiscal da Receita, como no Brasil. A lei americana exige coesão e coerência nas ações do fisco, de maneira que, se o critério interpretativo for alterado, o contribuinte que litigar terá grande chance de derrotar o governo na Justiça. Pela regra vigente nos EUA, atos da Receita são considerados inválidos se baseados, por exemplo, em intenção "meramente arrecadatória".

Enquanto isso, no Brasil prevalece o que Santi cha-
ma de "princípio da comodidade fiscal", que se resume a, "na dúvida, lavrar o auto de infração para ver no que vai dar".

O autor também sustenta um caso contra o sigilo fiscal, que "não pode servir de escudo jurídico ao controle social dos atos da administração tributária". Para ele, o sigilo "não pode comprometer a segurança jurídica pela assimetria de informação em nome do argumento altruísta [de que protegeria] a livre concorrência, a privacidade e a intimidade do contribuinte".

Em seu diagnóstico, falta direito à tributação no Brasil. "Equivocadamente, pela falta do direito se apela à moral [...], quando deveria ser o contrário." Segundo Santi, não se deve cobrar mais tributos nem em nome da solidariedade. "O dever do fisco é cumprir a lei, pois a lei é o instrumento por excelência da isonomia."

Para além das críticas, a obra tem também caráter propositivo. Santi sugere que desatar o nó tributário envolve a construção de confiança entre fisco e contribuinte, por meio da transparência.

Quanto mais legítima aos olhos do cidadão for a tributação, defende o autor, maior o nível do cumprimento voluntário das normas.

"Nesse sentido, a transparência fiscal é o caminho mais eficiente para o aumento da arrecadação."

O Jornalista OSCAR PILAGALLO é
autor de "História da Imprensa
Paulista" (Três Estrelas) e
"A Aventura do Dinheiro" (Publifolha).

"KAFKA, ALIENAÇÃO E DEFORMIDADE DA LEGALIDADE"
AUTOR Eurico Marcos Diniz de Santi
EDITORA Fiscosoft
QUANTO R$ 300 (590 págs.)
AVALIAÇÃO Bom ★


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