Folha de S. Paulo


Com inflação em 63%, venezuelanos mudam hábito no país

Gabriel Pineda, 52, e Mariana Sanchez, 39, são um casal comum da classe media venezuelana. Fizeram mestrado no exterior, gostam de bons vinhos e moram com os dois filhos num pequeno apartamento comprado a crédito em Caracas.

Mas a família está vendo seu padrão de vida ruir à medida em que se acirra a inflação, um dos sinais mais palpáveis da grave crise na Venezuela. Na última vez em que o governo socialista divulgou cifras, em setembro, a inflação já era a mais alta do mundo: 63,4 %. O índice total neste ano será de ao menos 70%, dizem economistas.

A nota de maior valor em circulação, de 100 bolívares, não compra nem sequer um dólar na cotação paralela, amplamente usada. O salário mínimo equivale a 49 notas de 100 bolívares.

"Mudamos hábitos alimentares, não viajamos nem ao interior para visitar meus pais e precisamos trocar de cama, mas não podemos", diz Mariana, designer gráfica. Gabriel é jornalista.

Os venezuelanos mais ricos se blindaram contra a crise graças a investimentos no exterior e reservas em moeda forte. Os mais humildes dependem até hoje de programas sociais criados sob a Presidência Hugo Chávez [1999-2013] e mantidos por seu sucessor, Nicolás Maduro. Gabriel e Mariana estão entre as duas pontas.

A Folha acompanhou o dia a dia da família para mostrar os efeitos da explosão inflacionária em curso. Pró-oposição, o casal pediu para ter nomes alterados e para não ser fotografado.

Gabriel e Mariana não têm salário fixo, mas vivem de trabalhos regulares que, até pouco tempo atrás, garantiam certo conforto material.

Ela desenha capas de livro e logotipos para empresas. Em média, ganha 40 mil bolívares por mês. No câmbio oficial, US$ 6.300. No paralelo, não chega a US$ 230.

Gabriel, que já foi editor de revista e colunista de um dos maiores jornais locais, hoje escreve para o site de uma emissora de TV. Ele tira cerca de 25 mil bolívares por mês - US$ 140 na cotação paralela.

ALIMENTAÇÃO

Corroborando avaliação de economistas, a alimentação é a vilã no orçamento do lar.

"O que eu pagava para encher quatro sacolas de supermercado hoje só serve para uma", diz Gabriel, na sala de estar do apartamento repleto de livros e discos.

"Quando foi a última vez que voltei para casa com uma garrafa de vinho?", pergunta à mulher. Ela responde: "Nem me lembro."

A família reduziu drasticamente a compra de carne e peixe. Numa manhã recente, Gabriel gastou 1.500 bolívares por 5 kg de carne, o dobro do que pagava há alguns meses. "Essa compra tem que durar duas semanas."

Para quatro pessoas, o volume equivale a 90 gramas por dia, menos que um bife pequeno. "Para compensar a perda nutricional, passamos a comer grãos", diz Mariana.

Em novembro, 1 kg de pêssego saía por 105 bolívares. No mês seguinte, Gabriel pagou 140 bolívares.

Despesas com os filhos Pedro, 10, e Isabel, 5, também afetam o orçamento. Eles continuam inscritos em escola particular e nas aulas de caratê e música. Na hora dos passeios, porém, opções gratuitas são prioridade.

Na sexta-feira (19), o programa foi uma peça de teatro infantil ao ar livre. Na semana anterior, uma apresentação sobre dinossauros num centro cultural. Para aliviar o bolso, o casal abriu mão de jantar fora e de comprar roupa.

PROBLEMA CRÔNICO

Inflação alta não é novidade na Venezuela. O recorde foi registrado em 1996: 103%.

Na era Chávez, a inflação se manteve em dois dígitos, mas numa média quase 12 pontos abaixo das décadas de 1980 e 1990.

O acúmulo de liquidez em circulação, resultado das receitas com o petróleo, foi um dos fatores para a explosão da inflação, que coincidiu com a morte de Chávez, em 2013. Economistas também culpam políticas como controle de câmbio, de divisas e de preços, além da expropriação de empresas privadas.

O sistema produtivo disfuncional, num país altamente dependente de importações, explica parte da escassez de produtos que vão de remédios a desodorante.

A crise acirrou-se neste ano com a degringolada do preço do petróleo, reflexo da oferta global abundante. A exportação de petróleo é responsável por 96% da arrecadação de dólares. Maduro se diz vítima de uma "guerra econômica."

Segundo Pedro Palma, da consultoria Econoanalítica, a inflação e a cotação do dólar paralelo continuarão aumentando porque Maduro está de olho na eleição parlamentar de 2015 e, por isso, não freará a gastança social.

Para o economista Ronald Balza, sem ajustes, o sistema produtivo continuará sufocado, perpetuando a inflação e a escassez.

Mas os ajustes necessários, como o fim do controle do câmbio e o alívio dos subsídios, também afetariam os venezuelanos, diz. "Com preços livres, quem terá dinheiro para comprar comida?"

Editoria de Arte/Editoria de Arte/Folhapress

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