Folha de S. Paulo


Veja o que marcou a era Mantega e seus ciclos à frente da Fazenda

O ministro Guido Mantega (Fazenda) está mais leve. Já empacotou seus pertences e enviou para São Paulo pilhas de caixas com oito anos e nove meses de história à frente da equipe econômica do governo federal.

Desde a eleição, o mais poderoso ministro de Dilma Rousseff ao longo de três anos seguidos cumpre hora extra no seu gabinete desde que recebeu aviso prévio da presidente da República durante a campanha.

"Faltam 275 horas", disse o ministro. Não o velho, mas o novo. A conta imprecisa foi feita há alguns dias a interlocutores por Joaquim Levy, o sucessor que Mantega preferia não ter tido.

A cronologia revela a ansiedade de se sentar em uma das cadeiras mais espinhosas da Esplanada neste segundo mantado de Dilma Rousseff.

Na transição, velho e novo se falam sobre o estritamente necessário. Nem a passagem do bastão em 2002 entre PSDB e PT foi tão gelada, dizem testemunhas.

Nos bastidores, integrantes do Palácio do Planalto acusam a Fazenda de boicotar os próximos condôminos da área econômica. Tudo é feito no maior cinismo, relata um ministro. Quando as duas equipes se encontram, há sorrisos e cordialidade. Discretamente, o clima é de "dedo no olho" mesmo.

Foi assim com o anúncio da engenharia financeira para reforçar o caixa da Petrobras. O socorro viria por meio de títulos lastreados em uma dívida da Eletrobras com a petroleira, tudo garantido pelo avalista geral da República do PT: o Tesouro Nacional.

Levy participou de reuniões e deu alguns pitacos. Mas esperou sentado o texto final da medida, teor que acabou conhecendo somente por meio da imprensa. Ninguém, porém, passou recibo, nem a presidente Dilma ficou sabendo da "peraltice" da equipe de "Guidinho", como ela costuma chamá-lo nos momentos de bom humor.

Sergio Lima/Folhapress
Guido Mantega após discurso e receber o prêmio da Academia Brasileira de Ciências Contábeis
Guido Mantega após discurso e receber o prêmio da Academia Brasileira de Ciências Contábeis

CIÚMES

A leveza atual de Guidinho, aliás, em nada se parece com a irritação do mês passado, quando ficou sabendo, pelos jornais, que Levy era cotadíssimo para seu lugar. Ele pediu logo uma conversa com a chefe.

No encontro, afirmou, segundo relatos, que Levy era espaçoso e logo tentaria mandar no governo inteiro. A presidente ouviu atenta as razões para aquela espécie de veto e até se sensibilizou com um ou outro argumento.

Tanto que, ao retornar para o seu gabinete, Mantega passou a dizer, em conversas reservadas, que a nomeação de Levy era "reversível".

Não era. Para sua surpresa, Dilma optaria pelo ministro "espaçoso". A decisão final saiu da conversa com Levy, um papo que "impressionou" a presidente, conforme contam auxiliares.

A Folha tentou, por diversas vezes, ouvir a versão do ministro. Mas sua assessoria não ligou de volta.

Alex Argozino/Editoria de Arte/Folhapress

DISCIPLINA E VAIDADE

Duas características do ministro marcaram a era Mantega no controle da Fazenda. A primeira é a disciplina, traço obrigatório para conviver bem com Dilma.

Mantega raramente sai do tom. Para se curar das agulhadas dos críticos, buscava as agulhadas de Gu, o acupunturista indicado por Lula desde que uma bursite atacou seu ombro direito. Manteve a calma mesmo quando sua mulher descobriu um câncer agressivo.

Nos últimos anos, enquanto enfrentava ataques à sua gestão, não deixou de acompanhar a mulher em visitas constantes ao médico e em viagens internacionais em busca de remédios mais eficazes para combater o tumor de Eliane.

Recentemente, Mantega dividiu com amigos uma boa notícia. Um tratamento na Espanha começou a surtir resultados.

FÚRIA

O ministro poucas vezes foi visto rodando a baiana. A Folha, entretanto, descobriu um desses raros momentos.

Era fim de 2013. O Palácio do Planalto estava furioso com o fato de a diretoria da Petrobras ter aprovado, sem consultar o governo, uma fórmula para reajuste automático da gasolina.

O gesto era um recado claro de incômodo com o fato de Dilma e Mantega represarem reajustes do combustível para não pressionar a inflação.

Ao tomar conhecimento do "troco" da cúpula da estatal, Mantega marcou reunião do conselho de administração da empresa. O encontro foi tenso. Em um dos intervalos, o ministro se dirigiu ao banheiro, seguido por alguns diretores. "Vocês querem me f...?", indagou, irritado.

Os talhos na imagem de Guido com o mercado financeiro estão diretamente relacionados às hoje famosas pedaladas do secretário do Tesouro, Arno Augustin, para fechar as contas federais.

Enquanto Arno se fortalecia com Dilma, Mantega foi se aproximando do secretário. Juntos, fecharam um pacto de convivência. Há poucos dias, enquanto fazia uma espécie de balanço da sua gestão, soltou um desabafo: "Arno foi um cara leal".

A outra característica, dizem amigos e funcionários, é a vaidade, razão pela qual não saiu em 2010, ano em que poderia ter deixado a cadeira com uma economia crescendo em ritmo chinês.

Alguns afirmam que Mantega perdeu o bonde da própria história. Ou, para outros, simplesmente encolheu -os números e a si próprio.

Seus dois ciclos no comando da economia são díspares. Em 2010, a inflação fechou em 5,91%, mas a economia avançou 7,5%. Em 2014, o IPCA pode superar o teto da meta (de 6,5%), enquanto a taxa de expansão do país está colada no chão.

A comparação também é desconfortável considerando outros critérios. Há quatro anos, as vendas de produtos e serviços brasileiros no exterior superavam as compras em quase US$ 20 bilhões. Agora, o país pode amargar o primeiro resultado negativo nesta conta desde 2000.

No parâmetro fiscal, mais água fria. Em 2010, a economia para pagamento de juros da dívida foi de 2,7% do PIB (Produto Interno Bruto). Em 2014, ninguém sabe o que vai sobrar (nem Levy, diga-se de passagem, pois a Fazenda não lhe abre as contas). A única certeza é que será pouco.

BOM HUMOR

Guido não é de dar muita intimidade, mas não perde a chance de uma brincadeira. Ainda nos tempos de Lula, em um encontro com o conselho de uma agência de classificação de risco que acabara de elevar a nota de crédito do Peru, mas não mexeu na nota do Brasil, Mantega não perdeu a viagem.

Em inglês, sapecou uma piada diante dos executivos estrangeiros: "Sabe. Às vezes é melhor ter o Peru na sua frente do que atrás de você".

Somente os brasileiros riram. Os demais ficaram com cara de interrogação. Também pudera. A palavra "peru" não tem a mesma conotação nos Estados Unidos.


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