Folha de S. Paulo


"Ajuste sem recessão só acontece com mágica", diz ex-presidente do BC

Um dos economistas mais respeitados do país, Affonso Celso Pastore afirma sem rodeios que o ajuste necessá-
rio para colocar a economia em rota de crescimento vai gerar, no curto prazo, recessão e desemprego.

Segundo o ex-presidente do Banco Central, o país precisa arrumar as contas públicas, elevar juros e permitir que a desvalorização cambial chegue aos preços. Tudo isso num momento de economia muito fraca.

"Não é um desafio que discurso de palanque resolva. O governo evitou tudo o que foi politicamente nocivo e os problemas se acumularam", afirmou Pastore à Folha.

Ele diz que as promessas da presidente Dilma de resolver a situação sem afetar o crescimento e o emprego não passam de "crenças". "Só se ela fizer uma mágica, que está no campo da metafísica, e não da ciência", afirmou. A seguir, trechos da entrevista.

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*Folha - Qual é o principal desafio do segundo mandato da presidente Dilma?

Affonso Celso Pastore - O grande desafio desse governo é a política fiscal. Temos vários outros: o país não cresce, a inflação está no topo da meta, o deficit na conta-corrente é enorme.

No início do ano, o governo prometeu um superavit primário (não inclui pagamento de juros da dívida) de 1,9% do PIB. Até setembro, considerando as receitas que se repetem todos os anos, o país tem um deficit de 0,4%.

Precisamos de um superavit de 2,8% a 3% do PIB para estabilizar ou produzir uma leve queda da dívida pública bruta. Isso mostra a dimensão do ajuste.

Raquel Cunha/Folhapress
O economista Affonso Celso Pastore, que foi o presidente do Banco Central entre 1983 e 1985
O economista Affonso Celso Pastore, que foi presidente do Banco Central entre 1983 e 1985

Como as contas do governo chegaram a essa situação?

Desde que Dilma assumiu, em 2011, as despesas primárias do governo aumentaram sem parar. E não é despesa com pessoal, que continua estável, nem com Previdência Social, que cresceu pouco.

Também não são programas sociais. O Minha Casa Minha Vida (programa habitacional), por exemplo, representa 0,3% do PIB. O que aumentou foram as despesas que o governo determina.

E a receita também não cresce por causa das desonerações. Na crise global, o governo teve perda de receita de 3% do PIB em razão das desonerações. Dilma adicionou mais 2% de PIB de desonerações só em 2014!

O que é preciso fazer para arrumar as contas?

Terá que ser algo gradual ao longo de dois anos. Mas, para recuperar a confiança, é preciso um plano detalhado de como cortar despesas e elevar receitas. Vai voltar atrás nas desonerações? Vai criar novos impostos?

Esse ajuste tem que ser feito sob pena de perder o grau de investimento. O problema é que a economia está muito fraca. O governo tem uma opção dura pela frente.

O ajuste vai gerar recessão?

Nos Estados Unidos, quando o governo arrecadou mais e cortou gastos, foi recessivo. Na Europa, foi recessivo. Na China e na Índia, também. Por que no Brasil seria diferente? Não há mágica.

O diagnóstico da presidente era que o Brasil continuava sendo vítima da crise externa e que, por isso, precisava de medidas contracíclicas [como aumentar gasto em tempos de retração], mesmo com a economia em pleno emprego. É um contrassenso extraordinário.

O governo aumentou gastos para gerar crescimento e desonerou, imaginando que o investimento deslancharia. Não deu certo. A política fiscal não é instrumento para acelerar o crescimento.

Depois das eleições, o governo subiu juros e reajustou a gasolina. É um sinal de ajuste?

Não é sinal nenhum. A gasolina subiu apenas 3%, e deve ter dois aumentos de 0,25 ponto porcentual do juros. Eu quero ver os próximos lances.

Por que o deficit externo também é um desafio?

O Brasil liquidou com o superavit comercial. Nesse caso, temos um fator externo, porque o comércio passou a crescer muito menos depois da crise em 2008.

Outra questão é que acabou o ciclo de alta do preço das commodities depois que a China desacelerou. Tudo isso provocou uma estagnação das exportações.

O real estava valorizado em 2011, reduzindo a competitividade da indústria.

O governo então reduziu inesperadamente os juros e adotou controle de capitais para forçar a depreciação do real. O problema é que o câmbio mais fraco não reconstruiu a competitividade.

Por quê?

Se o câmbio desvaloriza e os juros caem, a inflação sobe. Para isso não ocorrer, o governo controlou os preços: segurou a gasolina, tirou o IPI de vários produtos. O resultado é que o câmbio mais fraco não chegou aos preços.

Esse governo nunca entendeu que a depreciação cambial só melhora a competitividade da indústria se o preço do produto vendido no mercado doméstico sobe.

A indústria agradece a generosidade do governo por desonerar a folha de trabalho e depreciar o câmbio, mas não diz, por ser politicamente incorreto, que o custo do trabalho cresceu e que o controle de preços impediu a retomada da competitividade.

Esse é o segundo desafio do novo ministro da Fazenda. Como resolver o problema da competitividade da indústria? Só tem um caminho: os salários têm que cair em relação aos preços.

Ou seja, será preciso reduzir o poder de compra das pessoas, com salários menores ou preços maiores. É isso?

Não é desafio que discurso de palanque resolva. Até agora o governo evitou tudo o que é politicamente nocivo e os problemas se acumularam.

É preciso corrigir os preços distorcidos e subir os juros. O curioso é que o governo disse na campanha que não precisava subir juros, mas elevou a taxa três dias após a eleição.

A combinação entre ajuste fiscal e um aumento de juros significa desacelerar o crescimento ainda mais. E a presidente diz, antes mesmo de anunciar o novo ministro, que vai fazer isso sem afetar o crescimento e o emprego.

É impossível?

Só se ela fizer uma mágica, que está no campo da metafísica e não da ciência. Metafísica é uma questão de crença. Proposições econômicas têm que ser passíveis de teste.

Existe alguma forma de a economia crescer?

Sim. O crescimento depende da produtividade. A infraestrutura está sofrida. Faltam estradas, ferrovias, aeroportos. Mas é preciso elevar a taxa de retorno das concessões. Com mais confiança e gastos eficientes, os empresários voltariam a investir e o país retomaria o crescimento.


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