Folha de S. Paulo


Fiscais encontram pela 1ª vez no setor têxtil haitianos em trabalho degradante

Pela primeira vez no setor têxtil, uma fiscalização do grupo de combate ao trabalho escravo de São Paulo encontrou um grupo de 12 haitianos trabalhando de forma degradante em uma oficina de costura que prestava serviço para um atacadista do Bom Retiro, região central da capital paulista.

Em ações anteriores, os fiscais localizaram trabalhadores bolivianos exercendo essa função em pequenas confecções e oficinas que costuravam peças para abastecer grandes redes varejistas ou lojas de grifes famosas.

Pelo código penal, o trabalho análogo à escravidão é aquele em que há submissão a condições degradantes, como jornada exaustiva (de 12 horas ou mais, acima do que prevê a lei), servidão por dívida e com riscos no ambiente de trabalho.

A oficina ficava no Brás e pertencia à comerciante Regina Mara de Fátima Kurahashi, que, segundo constataram os fiscais, não pagava salários há dois meses e alojou o grupo de forma precária em um imóvel com instalações elétricas que expunham os trabalhadores a risco de incêndio e acidentes.

Um casal boliviano foi contratado para ensinar os haitianos a costurarem. Os dois também cumpriam jornadas que chegavam a 15 horas, consideradas exaustivas, e eram submetido às mesmas condições de trabalho do grupo que veio refugiado do Haiti.

O Brasil passou a receber levas de imigrantes do Haiti após o terremoto que devastou o país. Geralmente eles entram pelo Acre, e de lá se dirigem a outras regiões do país, como São Paulo.

SEM SALÁRIO

Os haitianos tinham carteiras de trabalho, segundo os fiscais, mas com anotações que simulavam a contratação como aprendizes de costureiro, sem recolhimento de FGTS nem INSS.

"É uma fraude para rebaixar salários. A lei de aprendizagem prevê supervisão de uma entidade para dar curso, como Senai, e vale para jovens de 14 anos a 24 anos", diz Elisabete Sasse, fiscal do Trabalho que integrou a blitz.

Como aprendiz de costureiro, a promessa era pagar R$ 724 (salário mínimo nacional), e não o piso da categoria, de R$ 1.100.

Em São Paulo, o salário mínimo válido para o Estado é de R$ 810.

As máquinas de costura não tinham travas de proteção e ofereciam risco de amputação de dedos –18 delas foram interditadas.

Alimentos deteriorados também foram localizados no imóvel, que tinha paredes mofadas, colchões rasgados e botijões de gás armazenados de forma inadequada e com risco de explosão, segundo a fiscalização.

"A promessa era de me pagar R$ 1.500 quando ela foi buscar trabalhadores no centro que recebe os imigrantes, oferecendo moradia e comida. Mas depois, a realidade aqui foi outra", diz Saintil Denold, 25, que trabalhava como ajudante e tradutor do grupo. Ele chegou ao país em 2012 e ajudava os demais trabalhadores que não falavam português.

Denold está no Brasil há dois anos, e os demais integrantes do grupo chegaram há pouco mais de dois meses e estavam abrigados pela pastoral Missão da Paz, na região central de SP.

Apu Gomes/Folhapress
Haitiano Saintil Denold, 25, que está há dois anos no Brasil e trabalhava na oficina de costura no Bom Retiro (SP)
Haitiano Saintil Denold, 25, que está há dois anos no país e trabalhava na oficina no Bom Retiro (SP)

CONTABILIDADE INFORMAL

Segundo o auditor fiscal Sérgio Aoki, que participou da ação, anotações feitas em cadernos, em uma contabilidade informal, demonstram que vários trabalhadores que passaram pela oficina também não receberam salários.

"Existe um inquérito em andamento no Ministério Público de Trabalho, além de diversas reclamações trabalhistas até fora do Estado", afirma Aoki.

Os apontamentos dessa contabilidade indicavam que o pagamento seria por peça. Cada trabalhador receberia R$ 0,50 por peça produzida.

A denúncia de irregularidades chegou ao Ministério do Trabalho por meio de um dos trabalhadores após ter ficado dois meses sem salário –e após a empregadora ter parado de fornecer alimentação.

'PORTA TRANCADA, SOFÁ RECHEADO'

Dois haitianos, que preferem não ter nomes mencionados, relataram que a dona da oficina trancava os alimentos em um local de acesso restrito. Sacos de arroz e feijão, café e macarrão foram encontrados escondidos no interior de um sofá.

A fiscalização constatou a situação na blitz que ocorreu no dia 5 de agosto.

"Na contratação, a empregadora ofereceu salário, alimentação e moradia. Ainda que de forma verbal, estava no pacote no contrato que ela deveria cumprir," diz Luis Alexandre de Faria, auditor que integra o programa de erradicação do trabalho escravo urbano.

Sem salários, o grupo parou de trabalhar, mesmo após o pagamento de um vale de R$ 100, quando protestaram contra o não cumprimento do contrato.

"Ao cortar a alimentação, que já era precária, foi o mesmo que dizer: Você não trabalha, você não come", afirma a auditora.

A fiscalização interditou a oficina e aplicou 14 autos de infração à atacadista As Marias, empresa que contratou a comerciante há dois meses para costurar peças para a marca. A empresa foi responsabilizada porque a produção da oficina foi encomendada para As Marias.

OUTRO LADO

"Vou sair do ramo, estou entregando o imóvel e fechando as portas", disse a dona da oficina.

"Paguei um vale (de R$ 100) e não os salários (em torno de R$ 724) porque não tinha produção e o pessoal estava aprendendo a costurar."

Ela afirma estar em dificuldades financeiras, após não ter recebido de um cliente, e que a alimentação foi mantida. As contas de água, luz e impostos estão sendo pagas de forma parcelada.

Mirian Prado Gonçalves, uma das sócias da atacadista As Marias, afirmou que terceiriza 90% de sua produção, que não sabia da contratação de haitianos e que assumiu todas as dívidas trabalhistas.

"Tenho 33 funcionários na empresa, que recebem todos os direitos. Forneço para diversos varejistas. Aqui só entra e sai mercadoria com nota fiscal", afirma a empresária.

"Se cometemos um erro foi por não saber que tínhamos de ir in loco verificar as condições de trabalho."

Um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) foi assinado com o Ministério Público do Trabalho, e a empresa assumiu o pagamento dos direitos dos 14 estrangeiros, além de fornecer cestas básicas em caráter de emergência para garantir a subsistência do grupo.

A rescisão total é de R$ 56.283,85, e a primeira parcela já foi paga aos trabalhadores. As demais serão pagas até dezembro.

"Não há como confiar e correr riscos como esse. Posso até perder em competitividade, mas vou montar uma oficina, contratar diretamente", diz a empresária.

MAIS UM CASO NO ATACADO

Em outra ação fiscal em 17 de julho, os fiscais localizaram 17 bolivianos, sendo uma adolescente de 15 anos grávida, trabalhando em condições semelhantes.

A oficina pertencia a Guilherme Mamani, que está no Brasil há 10 anos e produzia para Seiki, atacadista de grande porte que fornece para 100 pontos de vendas espalhados pelo país.

Parte não tinha registro, parte estava irregular no país, segundo documentos dos fiscais.

Em oito meses, a oficina produziu 11.328 peças de roupas das marcas Seiki e Nitrogen, ambas da atacadista, segundo documentos dos fiscais.

O valor por peça era em média de R$ 10. Um terço era para despesas de moradia, luz e alimentação; um terço para os donos da oficina e um terço para os trabalhadores.

Por mês, o salário era de R$ 700 –inferior ao piso da categoria cerca de R$ 1.100. A jornada era de 12 horas e meia.

"Existia limitação em deixar a oficina, e as carteiras de trabalho ficavam retidas no local. Só podia ocorrer com a autorização prévia dos donos da oficina, que também retinham as carteiras de trabalho", dizem documentos dos fiscais.

DE VOLTA PARA CASA

"Estou decepcionado com as leis no Brasil. Sou criminoso porque quero dar casa e comida aos meus colegas bolivianos? Não entendo o Brasil, quero voltar para casa", diz Mamani, dono da oficina Guiller Confecção.

O advogado Horácio Conde, que representa a atacadista Seiki, informou que a empresa desconhecia a situação e que essa é uma das cerca de 20 oficinas que trabalham para as marcas Seiki e Nitrogen, que pertencem à atacadista.

A empresa pagou os direitos e verbas rescisórias de todos os trabalhadores bolivianos.

"A Seiki não tinha conhecimento do total de funcionários contratados pela oficina e somente três estavam sem carteira assinada", diz o advogado, que informou ainda que a empresa vai aprimorar a fiscalização.


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