Folha de S. Paulo


Queda de jato da Malaysia Airlines perturba viagens de negócios

A qualquer dado dia, ocorrem cerca de 100 mil voos de companhias de aviação comercial, percorrendo mais de 50 mil rotas, em um planeta no qual há sempre conflitos armados em curso, em algum lugar.

Porque as companhias estão enviando viajantes de negócios em missões que muitas vezes os levam a visitar, ou mais frequentemente a sobrevoar, áreas perigosas, os empregadores precisam dedicar mais atenção a uma questão ética e judicial chamada "dever de cuidar".

Isso significa, basicamente, que o empregador precisa tomar precauções razoáveis para garantir um "ambiente seguro de trabalho" para os viajantes de negócios, tal como descreve um relatório da companhia de gestão de risco e segurança iJet publicado em 2012.

As precauções incluem avaliar as condições de segurança no país de destino, conhecer o paradeiro dos funcionários, e manter contato regular com eles.

Mas a derrubada voo 17 da Malaysia Airlines, na quinta-feira passada perto da fronteira da Ucrânia, pode criar um novo fator para os empregadores e "tem consideráveis implicações para as companhias e os executivos de viagens de negócios responsáveis pelo dever de cuidar", diz Greeley Koch, diretor executivo da Associação de Executivos de Viagens Empresariais.

"Será que agora se tornará necessário que os departamentos de viagens garantam que as companhias de aviação preferenciais não sobrevoem zonas de guerra, áreas em conflito civil ou regiões em crise?"

Isso, evidentemente, seria uma tarefa muito complicada, mas a derrubada de um jato comercial, ao que tudo indica por meio de um sofisticado míssil antiaéreo capaz de atingir aeronaves em altitude elevada, sublinha a crescente complexidade das questões relacionadas ao dever de cuidar.

Embora seja óbvio que nenhuma empresa ou companhia de aviação coloca pessoas em risco deliberadamente, "às vezes novos riscos são identificados, e providências precisam ser tomadas", disse Koch.

Não está claro que providências seriam essas, mas executivos de viagens disseram à associação que estão avaliando as questões específicas de transporte aéreo despertadas pelo desastre do voo 17.

As principais entre elas se referem à prudência de viajar sobre uma região conturbada na qual combatentes haviam pouco antes derrubado um avião de transporte militar ucraniano que voava a cerca de 6,4 mil metros de altitude.

Embora houvesse proibições a operações de aviação internacional sobre a Crimeia, mais ao sul, as ordens operacionais para a região em que o voo 17 foi derrubado definiam a rota como segura para voos - desde que realizados em altitude superior a 9,75 mil metros.

O voo 17, de Amsterdã para Kuala Lumpur, na Malásia, estava voando a 10 mil metros, em uma rota aérea de uso comum e muito frequentada até recentemente por centenas de voos entre o norte da Europa e a Ásia.

"Trata-se de uma rota internacional bem estabelecida", disse Anthony Roman, consultor de segurança, antigo piloto comercial e instrutor de pilotagem. "Muitas companhias de aviação a percorrem regularmente. No entanto, em abril, as autoridades europeias de aviação lançaram alertas aos países membros de que a região da Crimeia deveria ser evitada.

Em maio, a Administração Federal da Aviação (FAA) norte-americana restringiu os voos sobre a Crimeia e lançou um alerta quanto a voos sobre o leste da Ucrânia".

Ele acrescentou que as companhias aéreas muitas vezes decidem que "se uma rota é a mais inteligente, e está legalmente disponível, nós a percorreremos, enquanto estiver legalmente disponível. O mais provável é que uma combinação desses fatores esteja em ação".

Quanto ao dever de cuidar, da parte das empresas, Roman aponta que os executivos que planejam viagens para funcionários de uma companhia não têm informações sobre as rotas usadas para voos específicos, que são determinadas pelos controladores das companhias de aviação e estão sujeitas a mudanças em voo determinadas pelo comandante do avião ou pelo controle de tráfego aéreo, por motivos de excesso de tráfego ou condições climáticas.

E dada a crescente sobreposição de rotas causada pela consolidação cada vez maior das alianças mundiais entre companhias de aviação, pode ser difícil determinar até mesmo que companhia de aviação está operando o voo. O voo 17 da Malaysia Airlines era também o voo 4103 da KLM - e a maioria dos passageiros à bordo eram cidadãos holandeses que provavelmente fizeram suas reservas via KLM.

A mudança das rotas das companhias de aviação no espaço aéreo ucraniano apresenta escolhas difíceis e possíveis controvérsias.

No domingo, por exemplo, o Flightradar24.com, serviço que rastreia voos em tempo real em todo o mundo, mostrava que o voo 4 da Malaysia Airlines, de Kuala Lumpur a Londres, um Airbus A380 com capacidade para 494 passageiros, estava voando sobre a Síria, em lugar de seguir sua rota habitual sobre a Ucrânia.

Um ano atrás, a FAA alertou as companhias norte-americanas de aviação quanto a possíveis perigos nos céus sírios por conta de mísseis antiaéreos.

A Malaysia Airlines informou que a rota do voo 4 sobre a Síria havia percorrido "espaço aéreo aprovado pela Organização Internacional da Aviação Civil".

As companhias de aviação passaram a evitar o espaço aéreo ucraniano. Os mapas da Flightradar24.com mostram a Ucrânia como um grande buraco na rede de tráfego aéreo da Europa, Rússia e Ásia.

Na segunda-feira, por exemplo, apenas alguns voos comerciais percorriam o espaço aéreo da Ucrânia, todos eles se aproximando de ou partindo do aeroporto internacional Boryspil, perto de Kiev, cerca de 560 quilômetros a oeste do local de queda do voo 17, perto de Donetsk, no leste da Ucrânia.

O radar mostrava uma fina trilha de voos se curvando ao longo da fronteira entre Rússia e Ucrânia e por sobre o Mar Negro, e uma larga corrente de voos a oeste da Ucrânia, entre a Europa, o Mediterrâneo e a Ásia.

Reagindo ao desastre do voo 17, algumas companhias de aviação se apressaram a anunciar que já há algum tempo não voavam sobre a Ucrânia - mas o Flightradar24.com informou no Twitter pouco depois da queda do avião da Malaysia Airlines que "diversas companhias de aviação foram rastreadas voando sobre a Ucrânia ainda ontem, ainda que aleguem que vêm evitando o espaço aéreo ucraniano há meses".

O Flightradar24 não identificou as companhias em questão. No final de semana, a Finnair teve de recuar depois de informar na mídia social que não voava sobre a Ucrânia, acrescentando que "a segurança [dos passageiros] é nossa principal prioridade".

Dados do Flightradar24 mostram que a companhia de fato voou sobre a Ucrânia nos últimos dias. A Finnair terminou por reconhecer que o Flightradar24 estava certo, e anunciou que não estava mais voando sobre a Ucrânia.

Tradução de Paulo Migliacci


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