Folha de S. Paulo


Piketty responde a críticas de 'FT' a seu livro

O economista Thomas Piketty respondeu a críticas do jornal britânico "Financial Times" a seu livro "Capital in the Twenty-First Century", que vem sendo a sensação editorial do ano.

Sua tese sobre a desigualdade crescente se enquadrou bem ao zeitgeist ("espírito do tempo") e eletrificou o debate sobre política pública pós-crise financeira.

Levantamento feito pelo jornal mostra que o francês parece ter se enganado nas contas.

Os dados que embasam o volume de 577 páginas de Piketty contêm uma série de erros que adulteram suas conclusões.

O tema central da obra do professor Piketty é que as desigualdades de renda estão voltando a crescer, para níveis vistos pela última vez antes da Primeira Guerra Mundial.

O estudo do "Financial Times" contraria essa afirmação, indicando que existem poucas provas nas fontes originais de Piketty que sustentem a tese de que porção cada vez maior da riqueza mundial se concentra nas mãos da minoria mais rica.

Leia, abaixo, a resposta de Piketty ao autor da reportagem do "Financial Times", Chris Giles

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Caro Chris

Fico feliz por os jornalistas do "Financial Times" estarem usando os arquivos de Excel que coloquei online. Apreciaria muito se você pudesse publicar esta resposta em companhia de seu artigo.

Permita-me começar afirmando que o motivo para que eu tenha colocado online os arquivos em Excel, incluindo as fórmulas detalhadas de Excel para a construção e ajuste de dados, é exatamente o desejo de promover um debate aberto e transparente sobre essas questões importantes e delicadas de mensuração (se houvesse alguma coisa a esconder, algum problema de manipulação, por que eu colocaria tudo isso online?)

Permita-me dizer também que certamente concordo em que as fontes disponíveis de dados sobre riqueza são muito menos sistemáticas do que as fontes sobre renda. De fato, um dos principais motivos para que eu favoreça a tributação da riqueza e a troca automática de informações bancárias é que isso seria uma maneira de desenvolver mais transparência financeira e fontes mais confiáveis de informação sobre a dinâmica da riqueza (mesmo que o imposto tivesse alíquota muito baixa, algo com que você pode concordar).

Por enquanto, temos de trabalhar com aquilo de que dispomos, ou seja, um conjunto muito diversificado e heterogêneo de fontes de dados sobre a riqueza: declarações históricas de herança, estatísticas sobre impostos de herança, raros dados quanto a impostos sobre propriedade e patrimônio, e pesquisas domiciliares com dados autorreportados sobre patrimônio (as quais tipicamente abarcam subestimativa forte de valor para os domicílios de patrimônio mais alto).

Como deixo claro no livro, no apêndice online e nos muitos estudos técnicos que publiquei sobre o assunto, é preciso realizar diversos ajustes técnicos sobre as fontes de dados brutos, para torná-las mais homogêneas ao longo do tempo e entre diferentes países. Tentei, no contexto do livro, fazer as escolhas e a arbitragem mais justificadas sobre fontes e ajustes de dados. Não tenho dúvida de que minha série histórica de dados será melhorada no futuro (é por isso que coloquei todos os dados online).

De fato, o World Top Incomes Database (WTID, ou banco de dados mundiais de riqueza) está a caminho de se tornar um banco mundial de dados sobre renda e riqueza, nos próximos anos, e colocaremos online estimativas atualizadas abarcando mais países. Mas me surpreenderia muito se quaisquer das conclusões substantivas sobre a evolução em longo prazo das distribuições de renda fosse seriamente afetada por essas melhoras.

Por exemplo, minha série de dados sobre os Estados Unidos já foi estendida e melhorada por um novo e importante estudo de Emmanuel Saez (Berkeley) e Gabriel Zucman (London School of Economics). O trabalho deles foi realizado depois que meu livro foi escrito e infelizmente não pude usá-lo para o livro.

Saez e Zucman usam dados muito mais sistemáticos do que aqueles que usei para meu livro, especialmente quanto ao período mais recente. A série deles, além disso, foi construída com base em fontes de dados e metodologia completamente diferente (a saber, o método de capitalização, com o uso de influxos de renda de capital e declarações de renda por categoria de ativo). Os principais resultados estão disponíveis em http://gabriel-zucman.eu/files/SaezZucman2014Slides.pdf. Como você pode ver, os resultados deles confirmam e reforçam minhas constatações: a ascensão na participação dos mais ricos na distribuição de riqueza nos Estados Unidos foi ainda maior do que mostro em meu livro, nas últimas décadas.

No gráfico anexo, comparo a série deles à série aproximada que ofereço em meu livro. Como você pode ver, os perfis históricos gerais são muito semelhantes. É exatamente isso que espero ao coligirmos mais dados sobre outros países, igualmente: certamente melhoraremos minha série e os ajustes de dados (alguns dos quais certamente podem ser debatidos), mas não acredito que isso venha a ter grande impacto sobre as constatações gerais (ver também a página 91/92 de http://gabriel-zucman.eu/files/PikettyZucman2014HID.pdf ).

Por fim, permita-me afirmar que minhas estimativas sobre concentração de riqueza não levam plenamente em conta o patrimônio offshore e provavelmente erram do lado da cautela. Certamente não estou tentando fazer com que o quadro pareça mais sombrio do que é. Como deixo claro no capítulo 12 de meu livro (ver especialmente as tabelas 12.1 e 12.2), os principais detentores de riqueza parecem estar registrando crescimento médio de patrimônio muito mais rápido nas décadas recentes, pelo menos de acordo com os rankings de riqueza publicados por revistas como a "Forbes".

Isso se aplica não só aos Estados Unidos como ao Reino Unido e ao resto do planeta. Esse fator não é computado propriamente pelas pesquisas de riqueza e estatísticas oficiais, entre as quais as estatísticas recentes publicadas pelo Reino Unido. É claro que, como declaro abertamente em meu livro, os rankings de riqueza publicados por revistas estão longe de servir como fonte confiável de dados.

Mas por enquanto, é isso que temos, e o que temos sugere que a concentração de riqueza no topo está avançando em praticamente toda parte. É claro que se o "Financial Times" produzir estatísticas e rankings de riqueza que demonstrem o contrário, eu me interessaria muito por ver essas estatísticas, e mudaria alegremente minha conclusão. Por favor mantenha-me informado.

Tudo de bom

Thomas

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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