Folha de S. Paulo


Análise: Moedas digitais podem alterar modo de se fazer negócios

Se eu ganhasse um bitcoin a cada vez que conversei com alguém que me disse que essa moeda digital não passa de uma trapaça, nos últimos seis meses, eu estaria rico. Ou pobre, a depender do dia da semana de que estejamos falando.

Observar a taxa de câmbio do bitcoin nos últimos 30 dias foi como observar o percurso de uma montanha russa. Em 7 de janeiro, por exemplo, o bitcoin estava sendo negociado a US$ 934; em 27 de fevereiro, havia caído a US$ 528; e em 5 de março havia subido a US$ 678. Por isso, meu palpite é que se você estivesse "investindo" na (ou seja, especulando com a) moeda virtual, se sentiria tão zonzo quanto qualquer freguês de um parque de diversões em um mau dia.

Mas eis o que temos de verdadeiramente estranho: enquanto as pessoas "normais" - e muitos jornalistas dos grandes veículos - acreditam que esse negócio do bitcoin deve ser malandragem, alguns dos cientistas da computação e hackers que conheço acreditam que seja a ideia mais interessante a surgir em décadas.

E de certa maneira a discrepância entre as duas opiniões pode servir de chave à compreensão do fenômeno.

O escritor irlandês Jonathan Swift observou, em uma citação famosa, que "sempre que um verdadeiro gênio aparece, é possível reconhecê-lo pelo seguinte sinal: todos os burraldos formam uma conspiração contra ele". Isso é um tanto rude para com meus amigos e parentes, mas contém um grão de verdade.

Será que o motivo para que o bitcoin desperte tamanha hostilidade e controvérsia está no fato de que desafie escancaradamente o que sempre consideramos como verdade indiscutível - no caso a crença de que moedas confiáveis precisam ser emitidas e controladas por bancos centrais?

'CRIPTOMOEDA'

Pausa para um breve intervalo técnico. A Wikipédia oferece um verbete útil sobre o bitcoin, descrevendo-o como "moeda e sistema de pagamento pessoa a pessoa". Foi criado em 2009 por um sujeito demoniacamente esperto que atende pelo pseudônimo Satoshi Nakamoto.

(Soa bem sinistro, não? É fácil imaginar esse tal Nakamoto acomodado em uma cadeira Eames, acariciando um gasto branco.)

Trata-se de uma "criptomoeda", assim chamada porque usa a criptografia para controlar a criação e transferência de bitcoins. (Criptografia, hein? A trama se adensa. E onde está o 007 quando precisamos dele?)

Os bitcoins são criados por um processo computacional chamado mineração, sob o qual participantes verificam e registram pagamentos em um livro-caixa público em troca de honorários por transação e de bitcoins recém-cunhados. É possível obter bitcoins por mineração ou em troca de produtos, serviços ou outras moedas.

E algumas empresas agora aceitam pagamentos com a moeda virtual.

Aos olhos do público, porém, um ar de precariedade e marginalidade cerca a moeda. Ela servia, por exemplo, como método preferencial de pagamento aos personagens escusos que compravam e vendiam produtos ilícitos no mercado online Silk Road (que já foi fechado).

E na semana passada a Mt Gox, uma das mais importantes bolsas de bitcoins, pediu concordata, alegando ser "altamente provável" que um defeito em seus sistemas de computação tivesse permitido que pessoa ou pessoas desconhecidas roubasse(m) 750 mil bitcoins de seus usuários. Isso significa cerca de US$ 500 milhões em dinheiro velho e, porque não existe um sistema de proteção a depósitos no mundo das criptomoedas, muita gente se viu repentinamente bem mais pobre do que imaginava, e muito zangada por isso.

MEIO DE TROCA

Esses revezes resultaram em uma verdadeira orgia de comentários do tipo "eu não disse", o que é justo. Mas, no calor da batalha, um ponto importante parece ter sido ignorado. O dinheiro serve a três funções: como meio de troca, unidade de contagem e forma de armazenar valor.

A história recente demonstra que o bitcoin executa mal a segunda e a terceira dessas funções. Sua volatilidade o torna inútil como veículo de hedge contra riscos. Mas resta a primeira função - como meio de troca.

E é quanto a isso que as coisas se tornam realmente interessantes, porque o bitcoin parece se sair bem nesse papel ao tornar pagamentos online de pequenas quantias muito baratos e fáceis.

Desde que a Web decolou, uma das coisas que dificultam a realização do verdadeiro potencial do comércio e da venda de conteúdo online é o custo elevado das transações online seguras.

Os cartões de crédito tipicamente exigem pagamento de 2,5% a 5% sobre cada transação, o que torna os "micropagamentos" (da ordem de frações de centavo por transação) impossíveis. E o fato é que o bitcoin serve muito bem a micropagamentos, o que significa que ele poderia realmente causar uma virada no jogo.

O bitcoin pode perdurar ou não. Mas talvez tenha chegado a hora do sucesso para a ideia que lhe serve de base.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: