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"Sem acordo na OMC, o Brasil vai ficar órfão", diz pesquisadora

Se a conferência de Bali fracassar, minando a credibilidade da OMC, o Brasil ficará "órfão", alerta Vera Thorstensen, diretora do centro de comércio global da Fundação Getúlio Vargas e ex-assessora da missão brasileira na OMC por 15 anos.

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Para ela, o multilateralismo está em crise e o Brasil pode perder seu principal fórum de regras globais de comércio. O país ficaria, assim, a reboque do que for decidido no mega-acordo entre Estados Unidos e União Europeia.

A especialista avalia que o Brasil precisa fechar um acordo com os europeus e retomar a negociação com os americanos para tentar equilibrar o jogo, mesmo que isso leve a repensar o Mercosul.

Editoria de Arte/Folhapress

"Se não puderem nos acompanhar, o Brasil deve seguir sem a Argentina", disse à Folha. A seguir, os principais trechos da entrevista.

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Folha - Os países não chegaram a acordo nas discussões prévias em Genebra. O que podemos esperar de Bali?

Vera Thorstensen - As negociações em Genebra não fracassaram por falta de tempo, mas porque Roberto Azevêdo (diretor-geral) sentiu que os países estavam recuando em suas posições. Agora, tiveram uma semana para avaliar a situação. Ainda tenho esperança de que aconteça um milagre. O acordo para reduzir a burocracia nas aduanas é muito importante. Em agricultura e desenvolvimento dos países pobres, está aquém do esperado, mas é o possível.

Se não ocorrer um milagre, qual é o futuro da OMC?

Um fracasso da conferência de Bali vai mostrar que o multilateralismo como mecanismo de criação de regras para o mundo acabou. Não só no comércio, mas nas negociações de clima e até na ONU. É uma crise de governança global. O caminho para a OMC são acordos sobre um tema específico entre países que representem uma fatia relevante daquele setor. Mas um fracasso de Bali não significa que a OMC morreu.

Por quê?

A Rodada Doha pode estar moribunda, mas a OMC está viva graças aos resultados do tribunal de apelação. São quase 600 processos, mais de 200 com decisões finais. Todos os países têm aceitado as regras criadas pelo tribunal por meio da jurisprudência.

O fracasso de Bali mancharia a credibilidade do tribunal?

Até hoje nenhum país deixou de cumprir as decisões. Até os EUA, no caso do processo vencido pelo Brasil nos subsídios ao algodão, foi obrigado a negociar. No dia em que os grandes membros da OMC deixarem de seguir as decisões do tribunal, aí, sim, teremos uma grande crise.

Se houver acordo em Bali, será modesto. O que acontece com o restante da Rodada Doha?

Se for um sucesso, os ministros terão entre uma negociação mais profunda para abrir os mercados agrícola, industrial e de serviços, ou acrescentar novos assuntos, como concorrência e investimentos. A OMC tem que se abrir rapidamente a novos temas, para esvaziar os grandes acordos bilaterais.

Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
Vera Thorstensen, diretora do centro de comércio global da Fundação Getúlio Vargas
Vera Thorstensen, diretora do centro de comércio global da Fundação Getúlio Vargas

Poderia explicar melhor?

Na OMC, os grandes atores são os países, que discutem o comércio tradicional, como tarifas ou subsídios. Mas o comércio hoje é feito pelas empresas transnacionais, que querem discutir ambiente e economia digital, entre outros temas. A lógica dessas empresas é acabar com a OMC e focar nos acordos bilaterais, nos quais influenciam muito mais.

Um colapso da OMC prejudica o Brasil?

Muito. O Brasil vai ficar órfão. Perderemos nosso fórum de negociação, onde é possível buscar uma posição mais equilibrada. Esse fórum vai passar a ser os grandes acordos bilaterais. Os Estados Unidos e a União Europeia podem viver muito bem sem a OMC, mas para os países emergentes é diferente. Também somos o único país grande que tem interesse em agricultura. EUA, UE, China, Índia - ninguém quer liberalizar o comércio agrícola. E redução de subsídios agrícolas só dá para negociar na OMC.

Os EUA estão negociando um acordo bilateral como a UE. Como isso pode prejudicar o Brasil?

EUA e UE vão negociar regras entre si e nós vamos ter que aceitar se quisemos exportar para esses mercados. Nessa conversa de gigantes, ninguém fala em tarifas, mas em regras para propriedade intelectual, meio ambiente, e etc. Se esse acordo sair, os EUA vão incrementar suas vendas de produtos agrícolas para a UE, roubando espaço do Brasil. E os europeus vão aumentar as exportações de produtos industriais para os EUA, também deslocando produtos brasileiros.

O Brasil errou ao não buscar acordos bilaterais?

Não foi um erro, mas uma avaliação política do governo Lula de que não era possível entrar na Alca. E, sem a negociação com os EUA, as conversas com os europeus patinaram. Naquela época, fazia sentido focar na OMC, porque as discussões avançavam e é o fórum que mais nos beneficia. Mas perdemos uma boa oportunidade ao abandonar as negociações bilaterais.

O governo Dilma tenta retomar a negociação com a UE, mas não se acerta com a Argentina

É urgente fechar esse acordo com os europeus. E não faz sentir negociar com a Europa, mas não com os Estados Unidos. Negociar com ambos aumenta o poder de barganha. Agora, num momento em que o Brasil está órfão, é preciso repensar a estratégia. Sou a favor de flexibilizar o possível para negociar junto com a Argentina. Mas se eles não puderem por conta de seu momento político, o Brasil deve seguir sem a Argentina.


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