Folha de S. Paulo


No Fed, Yellen deve pressionar mais que Bernanke pela manutenção de estímulos

As raízes intelectuais e o estilo de liderança de Janet Yellen, que vai suceder Ben Bernanke na presidência do banco central americano no próximo ano, sugerem que ela deve pressionar mais vigorosamente que Bernanke pela ampliação da campanha de estímulo do Fed, de acordo com uma cuidadosa revisão de sua carreira, e de entrevistas com mais de duas dúzias de colegas e conhecidos.

Yellen expressa mais preocupação com as consequências econômicas do desemprego, uma convicção mais forte quanto à capacidade do Fed para estimular o crescimento do emprego, e mais disposição de tolerar alguma inflação a fim de reduzir o desemprego com mais rapidez. Até recentemente, sua ênfase no desemprego provavelmente a desqualificaria para o posto, e esse fator já inspirou oposição de alguns republicanos do Senado e investidores, preocupados com uma possível desatenção dela à proteção do país contra a inflação.

Experiência com babá inspirou pesquisas da futura presidente do Fed

Yellen é uma líder mais assertiva que Bernanke, e parece menos avessa a conflitos. Embora ambos encorajem o debate aberto e busquem tomar decisões de consenso, Yellen é uma defensora mais franca e persistente de suas opiniões pessoais. Bernanke permite que os dirigentes do Fed expressem suas opiniões abertamente, e Yellen expressou preocupação com a possibilidade de que essa cacofonia venha a solapar a efetividade do banco central, ao semear confusão quanto ao direcionamento da política monetária.

"Acredito que ela tenha um compromisso fundamental para com a continuidade, e que entenda que ainda temos um problema e que ainda precisamos que a política monetária faça muito", disse Christina Romer, ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos de Obama e amiga íntima de Yellen. "Ela é uma pessoa firme. Creio ela tenha uma dureza que Bernanke não tem".

Mas seria fácil exagerar na estimativa das mudanças que Yellen provavelmente trará. Ela seria a primeira democrata apontada para o comando do Fed em quase três décadas, mas uma dirigente progressista de banco central é diferente de um político progressista - e mais conservadora do que ele seria. Ela teve papel decisivo na definição de uma meta de inflação anual de 2% pelo Fed no ano passado, e demonstrou pouca disposição de tolerar inflação mais elevada.

Quanto às questões regulatórias, igualmente, as posições de Yellen são mais próximas das posições do governo Obama do que das adotadas pelos democratas de esquerda que defendem fervorosamente a sua indicação. Ela acredita que os mercados sejam imperfeitos e requeiram regulamentação significativa. Mas favoreceu o surgimento de gigantes financeiros como o Citigroup, nos anos 90, e não apoia os apelos por sua dissolução.

E Yellen pode ver a aplicação de seus instintos impedida por uma minoria cada vez mais irrequieta entre os dirigentes do Fed, que busca o fim antecipado da campanha de estímulo.
Richard Fischer, presidente do Federal Reserve Bank de Dallas - e futuro membro do comitê de política monetária do Fed a partir do ano que vem, como resultado do revezamento regular na composição do órgão - está entre esses dirigentes. Ele disse quanto a Yellen, na semana passada, que "ela está errada quanto à política monetária, mas é uma excelente pessoa, decente e maravilhosa".

PESQUISA

O trabalho acadêmico de Yellen e seu marido, o também economista George Akerlof deriva de sua observação de que as pessoas muitas vezes costumam pagar salários altos às suas babás. Eles argumentaram em diversos estudos que muitos empregadores optam por pagar mais aos funcionários do gastariam se decidissem substitui-los porque o moral melhor resulta em ganho de produtividade. Durante recessões, quando o preço de mercado da mão de obra cai, os empregadores da mesma forma evitam cortar salários porque o moral mais baixo reduziria a produtividade. Os empregadores não estarão economizando dinheiro caso a produção caia em companhia dos salários.

"As empresas não tentam pagar o mínimo possível para obter o pessoal necessário; quando há desemprego, elas se perguntam como cortes de salários podem afetar o comportamento dos trabalhadores", disse Yellen em entrevista, em 1995. "Eles se demitiriam ou se sentiriam insatisfeitos e trabalhariam com menos afinco pela companhia caso sintam que as políticas salariais adotadas por ela são injustas?"

Essa relutância em ajustar salários ajuda, por sua vez, a explicar por que a política monetária funciona. Quando o Fed tenta estimular a economia ao aumentar a disponibilidade de dinheiro, fica claro que os gastos aumentam. Mas os economistas debatem há muito se o resultado disso é que as pessoas comprem mais bens e serviços ou simplesmente que paguem preços mais altos pelas mesmas coisas. Em outras palavras, o estímulo monetário simplesmente causa inflação ou pode também produzir crescimento econômico?

O argumento depende da velocidade com que os preços se ajustam. Os defensores do estímulo monetário argumentam que o preço da mão de obra, especialmente, é "pegajoso" - os salários muitas vezes não se ajustam rapidamente. As pessoas gastam 10% a mais, as companhias faturam 10º% a mais, mas os salários se mantêm os mesmos. Como resultado, as empresas podem bancar mais trabalhadores.

Yellen e Akerlof viam sua teoria como explicação para a relativa falta de flexibilidade dos salários. Percepções de equanimidade, eles diziam, podem não ser afetadas de imediato por mudanças na base monetária. Ao menos alguns empregadores não ajustariam salários. E como resultado o estímulo seria capaz de causar alta no crescimento.
Outros economistas propuseram teorias alternativas para explicar o fator salário. O economista cujo relato se assemelha mais ao proposto por Yellen e Akerlof é, na opinião deles, ninguém mais que Summers, o rival de Yellen à sucessão de Bernanke.

Yellen também colaborou com Akerlof, e ocasionalmente outros colegas, em diversos outros projetos que empregam a análise econômica a fim de enfrentar questões de política pública.

Eles analisaram a lucratividade de companhias do leste da Alemanha e propuseram políticas para atenuar o desemprego da região, durante a reunificação; avaliaram estratégias de prevenção do crime e encontraram provas de que é importante encorajar os membros de uma comunidade a denunciar crimes; avaliaram as causas de filhos nascidos fora do matrimônio e alertaram que mudanças propostas nas normas da previdência social para esses casos dificilmente fariam diferença.

A primeira passagem de Yellen pelo conselho do Fed, com duração de três anos a partir de 1994, veio a indicar os postos que ela ocuparia no passado recente.

POSICIONAMENTOS POLÍTICOS
O presidente Clinton a apontou em companhia de outro acadêmico progressista, Alan Blinder, de Princeton, para temperar o conservadorismo e a visão de livre mercado do chairman do Fed, Alan Greenspan. Quando Yellen foi apresentada ao secretário do Tesouro Lloyd Bentsen, na casa deste perto de San Diego - enquanto Akerlof a esperava no carro que tinham alugado -, ela chegou carregando exemplos do trabalho de pesquisa que planejava usar na política econômica.

Yellen foi um dos raros dirigentes do Fed a desafiar Greenspan com sucesso. Em 1996, ela reuniu um acervo de pesquisas acadêmicas, entre as quais um estudo que havia encorajado Akerlof a escrever, para argumentar que o Fed deveria buscar moderar a inflação, não eliminá-la. As pesquisas demonstravam que alguma inflação ajudava a minimizar o desemprego. Os empregadores que relutavam em impor cortes de salários permitiam, em lugar disso, que a inflação erodisse o valor real dos salários, e com isso o custo da mão de obra.

Depois de retornar ao conselho, em 2010, ela angariou apoio interno à formalização dessa posição, ao estabelecer uma meta de 2% ao ano para a inflação.

Em debate correlato, em 1995, Yellen argumentou que reduzir o desemprego elevado deveria, em alguns casos, ser a mais alta prioridade para o Fed, superior até ao controle da inflação. O amargo sabor deixado pelos anos 70, quando o Fed permitiu que a inflação disparasse enquanto buscava combater o desemprego, tornou esse tipo de posição um sacrilégio por mais de uma geração, mas Yellen argumentou que o Fed havia permitido que o pêndulo oscilasse demais na direção contrária.

"Para mim, uma política sábia e humana seria a de permitir que a inflação suba, ocasionalmente, mesmo que ela esteja acima da meta", declarou Yellen. Ela repetiria o argumento no ano passado, ao buscar apoio para o anúncio que o banco central fez em dezembro de que toleraria inflação projetada de até 2,5%, a serviço da redução do desemprego.

Na metade dos anos 90, porém, as duas preocupações - a de que a inflação poderia ficar baixa demais ou o desemprego subir demais - eram puramente teóricas. De fato, o desemprego havia caído a tal ponto que muitos funcionários do Fed começaram a se preocupar com a inevitabilidade de uma alta na inflação.

Mas em memorando de 1996 que Greenspan distribuiu, com agradecimentos, aos membros do comitê de política monetária, Yellen articulou cuidadosamente os argumentos que o chairman vinha tentando explicar: o Fed podia manter os juros baixos porque a economia estava mudando. A produtividade estava crescendo e a concorrência internacional reprimia a capacidade dos trabalhadores de negociar aumentos de salário.

O histórico levou alguns críticos a acusar Yellen de pouco interesse pela estabilidade de preços.

"Creio que ela acredite demais na política de dinheiro fácil", disse o investidor Julian Robertson na segunda-feira à rede noticiosa CNBC, argumentando que a tolerância de Yellen quanto à inflação poderia levar a excessos como a alta nos preços das casas que resultou na crise financeira. "Creio que seja preciso lembrar que não estamos muito longe do ponto em que a mais recente bolha estourou".

Yellen obteve menos sucesso em influenciar a política fiscal nos dois anos em que integrou o Conselho de Assessores Econômicos do presidente Clinton. Pensadora cuidadosa que gosta de considerar as questões de muitos ângulos diferentes, ela não tinha os requisitos necessários ao trabalho em uma organização de pesquisa interna cuja função é oferecer comentários rápidos sobre ampla gama de questões econômicas. Também se viu excluída do círculo de assessores mais próximos do presidente.

Peter Orszag, então assistente especial do presidente para política econômica e posteriormente diretor de orçamento no governo Obama, declarou em entrevista recente que Yellen se saiu bem nas duas funções. No entanto, ele disse, "eu percebia por que as pessoas acreditavam que ela fosse especialmente boa em situações nas quais é preciso tomar decisões importantes que envolvam obter fatos e ponderar as consequências cuidadosamente, sem bater o martelo na hora".

Muitos dos assessores de Obama trabalharam com Yellen no governo Clinton, e alguns argumentam que Summers tem um perfil mais adequado à gestão de crises, incluindo problemas que podem surgir quando o Fed começar a reduzir seu programa de estímulo.

J. Bradford DeLong, economista de Berkeley e ex-funcionário do governo Clinton, expressou publicamente essa opinião, escrevendo em agosto que "em momentos normais", ele preferiria Yellen, mas dada a fraqueza da economia sua preferência era por Summers, porque "será necessário pensar com originalidade".

TRAJETÓRIA NO FED
Yellen voltou ao Fed em 2004 como presidente do Federal Reserve Bank de San Francisco, uma das 12 unidades que conduzem pesquisas, fiscalizam bancos locais e participam da formulação da política monetária do banco central.

Os economistas da equipe do banco que foram encarregados do primeiro briefing a Yellen sobre as condições do mercado de trabalho já estavam um pouco nervosos quanto à nova chefe, de longe a mais renomada economista presente. Mas acreditavam que ela os ouviria em silêncio, como seu predecessor na presidência da unidade costumava.

Ela mal esperou o final da primeira frase antes de interrompê-los.

"Opa, esperem um minuto", disse Yellen, "e quanto a isso?" - e começou a desenhar um gráfico com as mãos no ar.

"O choque que nossas expressões deviam estar exibindo - foi tanto uma libertação quanto descobrir repentinamente que você está em um mundo diferente", disse Mary Daly, hoje diretora associada de pesquisa do banco central. "Para onde Janet vai? Isso nos forçou a prestar muito mais atenção".

Yellen demonstrou considerável percepção econômica nos anos seguintes. Foi a primeira dirigente do Fed, em 2005, a descrever a alta nos preços dos imóveis residenciais norte-americanos como uma bolha que poderia prejudicar a economia. Também foi a primeira, em 2008, a afirmar que a economia estava em recessão. E no começo de 2009, falou de um "período prolongado de estagnação", descartando as preocupações quanto a um surto inflacionário iminente.

Seus alertas anteriores à crise foram hipotéticos e inconsistentes, no entanto. "Eu jamais afirmei que com certeza havia uma bolha; apenas mencionei a possibilidade", declarou Yellen em setembro de 2006. "Acho que estava inclinada a pensar que talvez houvesse uma bolha. Mas vi o que aconteceu no último ano ou pouco mais, e agora estou em dúvida". Além disso, ela não propôs uma mudança na política do Fed.

O Fed de San Francisco também fez pouco para restringir os excessos e abusos dos bancos a que fiscalizava, entre os quais o Wells Fargo e o Countrywide Financial, duas das maiores instituições de crédito hipotecário dos Estados Unidos. O desempenho de sua unidade não foi pior que o das demais unidades regionais, no entanto. E todas recebiam ordens do conselho do Fed, que havia promulgado instruções de que não deveria haver investigação quanto às divisões de crédito imobiliário "subprime" [de alto risco] em bancos como o Wells Fargo.

Ainda que Yellen não tivesse papel formal de fiscalização financeira, ela solicitava briefings mensais sobre o assunto e buscou alertar Washington. Mas não tentou pressionar unilateralmente as instituições financeiras. "Honestamente não sei se era algo que poderíamos ter feito", ela disse à Comissão de Inquérito sobre a Crise Financeira, em 2010. "Não creio que acreditássemos ter o poder necessário a isso".

Ela continuava a não ter posição central quando a crise começou. Funcionários do Fed de Nova York e em Washington, liderados por Bernanke e Tim Geithner, administraram os esforços para evitar o colapso. Mas depois da eleição de Obama, Yellen sabia que seria chamada a Washington. Um amigo recorda que, em dado momento, quando surgia o assunto, Yellen parou de dizer que "isso é inconcebível" e passou a dizer "nossa, era bem o que eu precisava, agora".

Em abril de 2012, Yellen disse a uma plateia em Nova York que o Fed não havia feito o bastante para estimular a economia depois da grande recessão. Yellen, como a maioria dos dirigentes do Fed, havia subestimado a profundidade da recessão e superestimado o vigor da recuperação. O discurso foi parte de uma campanha de meses de duração, a maior parte da qual conduzida nos bastidores da instituição, para convencer seus colegas de que o Fed tanto devia quanto podia fazer mais.

Mas alguns funcionários do Fed expressavam ceticismo sobre a capacidade do banco central para oferecer assistência adicional, ou preocupações quanto ao potencial custo dessas medidas. Nos meses posteriores ao seu discurso de abril, a defesa das medidas de assistência por Yellen contrastou fortemente com as visões do mais recente acadêmico a chegar ao conselho do Fed, o economista Jeremy Stein, de Harvard, que começou a expressar publicamente sua preocupação com a possibilidade de que os esforços do banco central desestabilizassem os mercados financeiros.

As opiniões de Yellen prevaleceram, até o momento. Ela não é amiga pessoal de Bernanke, mas os dois se respeitam e em geral concordam quanto à política econômica, de acordo com pessoas que conhecem bem o relacionamento entre eles. Em companhia de diversos aliados, eles criaram consenso no final de 2012 em torno da expansão das duas principais campanhas do Fed pela criação de empregos: mais aquisições de ativos e um compromisso prolongado para com as taxas de juro baixas.

No mês passado, a despeito da crescente pressão interna pela redução na escala mensal de compra de títulos, Yellen e seus aliados voltaram a vencer. O Fed surpreendeu os investidores ao anunciar que postergaria o início da redução em suas compras de ativos, porque a retomada da crise fiscal episódica que aflige Washington uma vez mais está ameaçando a recuperação econômica.

A posição do Fed desapontou alguns observadores que acreditam que ação mais forte é necessária para reduzir o desemprego, e rapidamente, enquanto outros observadores temem que o Fed já tenha exaurido toda a sua capacidade.

Os pronunciamentos inconsistentes e ocasionalmente contraditórios de dirigentes do Fed nos últimos meses também despertaram a ira dos investidores, que consideram a nova transparência do Fed como mais confusa do que a opacidade que o banco central exercitava no passado.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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