Folha de S. Paulo


Só crescimento liderado pelo Estado leva à recuperação, defende economista

O sistema econômico global é frágil, e uma crise de grandes proporções pode voltar a ocorrer. A avaliação é de Larry Randall Wray, professor de economia da Universidade do Missouri (EUA). Para ele, "só o crescimento liderado pelo setor governamental vai permitir que os países se recuperem plenamente".

Estudioso de John Maynard Keynes (1883-1946), Wray foi aluno de Hyman Minsky (1919-1996). Na sua visão, a crise desencadeada há cinco anos com a quebra do Lehman Brothers levou ao descrédito as políticas neoliberais, que deveriam estar na lixeira das escolas de economia. "Os histéricos do deficit estão errados", afirma.

University of Missouri-Kansas City
O professor de economia da Universidade de Missouri, Larry Randall Wray
O professor de economia da Universidade de Missouri, Larry Randall Wray

Autor de "Trabalho e Moeda Hoje" (Contraponto), o economista defende um programa universal de garantia de emprego, no qual o governo fica preparado para ser um empregador de última instância. Abaixo, trechos da entrevista concedida por e-mail.

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Folha - A crise internacional, que teve como marco o colapso do Lehman Brothers, completa cinco anos. O que mudou na economia mundial nesse período?

Larry Randall Wray - Infelizmente, o sistema financeiro global foi restaurado ao que era em 2006 graças a gigantescas operações de resgate feitas pelo setor público. O sistema não foi reformado nem investigado ou processado por fraude. Basicamente, ele foi autorizado a voltar a fazer o que estava fazendo nos anos anteriores à crise.

As economias reais ainda estão financeirizadas, com muitas dívidas e com o setor financeiro tendo uma fatia muito grande de lucros. Como resultado, na maioria dos países desenvolvidos o setor real está muito fraco. Os Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] tiveram sucesso em evitar o pior da crise e até tiveram ganhos com seus setores reais. O desenvolvimento da economia chinesa é sem precedentes.

A crise acabou? Está perto do fim? Vai ficar pior?

Não acabou. Sobretudo na zona do euro. Embora possa parecer que os EUA, o Reino Unido e alguns países desenvolvidos fora da Europa se recuperaram, seus setores reais estão fracos e suas instituições financeiras retomaram práticas de risco. O sistema econômico global é frágil, e uma crise de grandes proporções pode voltar a ocorrer.

EUA, Europa e países emergentes enfrentaram a crise de diferentes formas. Quem foi mais eficaz?

EUA, Europa e Reino Unido focaram em sustentar seus sistemas financeiros, e deixaram os setores reais caírem em recessões profundas. Os estabilizadores fiscais impediram que se instalasse uma grande depressão como a de 1930. As receitas fiscais caíram e os gastos governamentais subiram, mas não o suficiente para restaurar um crescimento robusto.
Só o crescimento liderado pelo setor governamental vai permitir que os países se recuperem plenamente, reduzindo o endividamento privado. Isso não está ocorrendo. Alguns países, sobretudo a China, usaram enormes estímulos fiscais. Ao mesmo tempo, nações produtoras de commodities foram ajudadas pela retomada da bolha global desse mercado. Dessa forma, a sorte desempenhou um papel importante na ajuda a economias emergentes.

A crise foi um golpe para as ideias neoliberais?

Certamente. Nenhum dos neoliberais viu a crise chegar. De fato, todas as políticas que eles recomendavam ajudaram a trazer a crise e nem deveriam ser ensinadas nos cursos de economia. Neoclássicos, círculo de negócios real, novo consenso monetário, regras de Taylor, hipótese de mercados eficientes: tudo deveria ser relegado à lata de lixo da história dos cursos de pensamento econômico. Todas essas teorias estão completamente desacreditadas.

Como estudioso de Keynes, o sr. diria que suas ideias voltaram com a crise?

Voltou uma versão bastarda do pensamento de Keynes, a que permite um papel positivo para o governo. No entanto, os administradores públicos perderam a cabeça com o aumento dos déficits orçamentários. Optaram pela austeridade e cederam à grande finança. Assim, não temos estímulos fiscais suficientes e nenhuma regulamentação significativa.

A crise fortaleceu ou enfraqueceu o sistema financeiro global?

Enfraqueceu. Ainda temos quase toda a financeirização, mas sem o crescimento econômico. Os encargos da dívidas aumentaram.

A crise fortaleceu ou enfraqueceu o poder dos Estados?

Enfraqueceu. A histeria do deficit forçou a austeridade e há cortes governamentais por toda a parte.

Fortes investimentos estatais sempre foram vitais para recuperar economias no passado. Por que os governos hesitam em gastar?

Medo irracional de deficit orçamentários. Os falcões do deficit atacam aqueles dirigentes políticos que ousam usar o governo para promover o desenvolvimento econômico. Está claro que a austeridade não costuma realmente reduzir os deficit orçamentários, pois mata a economia e destrói receitas fiscais. Quando isso acontece, os defensores da austeridade exigem mais derramamento de sangue na forma de cortes do orçamento. Isso cria um círculo vicioso.

Na realidade, gastos governamentais são o caminho mais seguro para a recuperação, pois não dependem das dívidas do setor privado. E criam renda no setor privado, fornecem títulos públicos seguros para a riqueza do setor privado. Os histéricos do deficit estão errados.

O Brasil voltou a aumentar suas taxas de juros. Essa decisão está na direção certa?

Não posso dizer com certeza, mas prefiro muito mais taxas permanentemente baixas. Zero é provavelmente o melhor. Elevar as taxas de juros não é uma boa maneira de combater a inflação. Se o problema é excesso de empréstimos e gastos, é melhor usar controles de crédito. Se o câmbio está caindo mais que o desejado, é melhor adotar controles de capital. Sei que acordos internacionais e a política interferem nisso.

Como o sr. avalia a questão do desemprego pelo mundo?

O desemprego entre os jovens e os grupos desfavorecidos é crônico e está aumentando. É causado tanto por fatores cíclicos -a retração que ocorreu na sequência da crise financeira global- quanto por tendências de longo prazo -o descompasso estrutural crescente, com crescimento e desemprego. Precisamos de uma solução. O único plano que conheço com chance de sucesso é um programa universal de garantia de emprego, no qual o governo fica preparado para ser um empregador de última instância. Todo país precisa disso.

A crise provocou mudanças políticas em vários países. Qual é o significado disso?

Parece que algumas mudanças benéficas aconteceram na América do Sul. Estive recentemente no Equador e fiquei impressionado com a vontade dos políticos de tentar coisas novas. Eu diria mesmo da China. A maior parte do mundo demitiu e continua a tentar as políticas neoliberais que falharam.

A crise colocou em questão o sistema do euro. O que é possível prever para o seu futuro?

Era possível prever o futuro da zona do euro mesmo antes da unificação monetária. Foi um plano falho condenado ao fracasso. Não é possível separar moeda e autoridade fiscal. Era claro que na primeira grave crise econômica ou financeira haveria um desastre. Foi o que aconteceu.

Como o sr. avalia a recuperação norte-americana?

Que recuperação? Ela não começou. Estamos batendo no fundo, à espera de uma nova crise. Só Wall Street vai bem, mesmo que de forma temporária, em grande parte devido a balanços falsos.

Como o sr. analisa a situação da China?

O setor bancário informal da China explodiu, fazendo as mesmas coisas que as outras instituições financeiras paralelas ["shadow banks", que passa ao largo das regulamentações] fizeram pelo mundo todo. No entanto, tenho esperança de que a China vai encontrar uma solução melhor. Em vez de sustentar o sistema financeiro paralelo, eles deveriam restringi-los, eliminando suas práticas ruins.

Por que os países emergentes passam por uma turbulência hoje?

Há uma série de razões. A mais importante deve ser a chegada ao fim do boom especulativo de commodities. Além disso, se os EUA e a Europa continuam a crescer lentamente, há redução de mercados para as exportações globais.


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