Folha de S. Paulo


Desaceleração na China é choque de realidade para os Brics

O ministro da Fazenda brasileiro Guido Mantega é conhecido por sua capacidade de encontrar interpretação otimista para qualquer notícia.

Mas até mesmo ele encontrou dificuldades para explicar um elemento importante no decepcionante desempenho econômico de seu país no primeiro trimestre --uma queda na produção mineral.

"O setor de extração mineral depende muito mais que outros do cenário econômico externo, e este continua adverso fora do Brasil, o que torna nossas exportações mais difíceis", lamentou o ministro.

A fraqueza do setor mineral --a grande fonte de receita para o boom econômico brasileiro da década passada, via embarques de minério de ferro à China-- oferece um vislumbre de uma verdade mais profunda e desconfortável não só para a maior economia da América Latina como para os demais membros não chineses do chamado grupo Brics de grandes países emergentes, que inclui também Rússia, Índia e África do Sul.

A China, por dez anos o principal propulsor do fenômeno conhecido como comércio sul-sul entre as grandes economias emergentes, pode não só estar registrando desaceleração no ritmo frenético de crescimento registrado no passado recente como também estar mudando de modelo, trocando a estrutura voltada ao exterior que favorecia o comércio com países emergentes, especialmente os exportadores de commodities da América Latina e África, bem como a Rússia, por um modelo cuja base seria o consumo interno.

É uma preocupação que se fez sentir quando três dos membros do grupo Brics --Brasil, África do Sul e Índia-- anunciaram decepcionantes crescimentos do PIB no primeiro trimestre.

"Os mercados estão demonstrando crescente preocupação sobre a sustentabilidade do atual modelo de crescimento chinês", afirmou Andre Loes, economista-chefe do HSBC, em um relatório publicado esta semana.

A questão para os demais países do grupo BRICS, fora a China, e os outros países em desenvolvimento é quanto crescimento podem esperar do comércio sul-sul caso a China se prove menos exuberante, especialmente em um período de recuperação na melhor das hipóteses anêmica para as economias desenvolvidas.

De acordo com dados compilados pelo governo brasileiro, as exportações entre os países do grupo Brics foram de cerca de US$ 282 bilhões em 2012, dez vezes acima do total registrado uma década antes.

MAIOR FATIA

A China responde com facilidade pela maior porção desse comércio entre os países do grupo, cerca de 38% das exportações entre os membros, seguida pela Índia por 22% e pelos demais com números entre os 10% e os 20%.

O comércio total dos países do grupo Brics com os países desenvolvidos e os demais emergentes teve valor da ordem de US$ 6,04 trilhões no ano passado, quase dois terços do qual gerado pela China, de acordo com o governo brasileiro.

O comércio entre todos os países emergentes, excluindo a China, foi estimado em US$ 3 trilhões, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Boa parte desse total é comércio regional --o Brasil, por exemplo, depende pesadamente da Argentina como destino de exportação para seus bens industrializados. Mas porcentagem crescente envolve comércio entre diferentes regiões.

A África, especialmente, vem se tornando um campo de batalha entre os países do grupo Brics e as demais economias emergentes que buscam explorar os recursos naturais do continente ou criar destinos de exportação.

Os países do grupo Brics comercializam mais com a África do que entre eles, diz Jeremy Stevens, economista do Standard Bank, o maior banco africano por ativos.

O banco estima o comércio total entre Brics e a África em US$ 340 bilhões em 2012, o que representa avanço superior a 1.000% em uma década. De 2007 para cá, o comércio do grupo com a África mais que dobrou, liderado pela África do Sul
.
"Pensando quanto ao futuro, mantemos firmemente nossa projeção comumente citada de que o comércio entre a África e os Brics vai ultrapassar os US$ 500 bilhões até 2015, com cerca de 60% do total consistindo de comércio entre a China e a África", ele disse.

Os elos do Brasil estão primordialmente na energia e agricultura, com foco nos países africanos de fala portuguesa, como Moçambique, onde a Vale --exportadora de commodities-- está criando uma operação multibilionária de extração de carvão, e Angola, o segundo maior produtor africano de petróleo, atrás da Nigéria.

"A Rússia tem energia de sobra, e por isso não tem o mesmo incentivo que os chineses e indianos para entrar no mercado da África", diz Charles Robertson, economista chefe mundial da Renaissance Capital, uma das empresas russas mais conhecidas por seus investimentos na África.

As perspectivas africanas da Índia parecem especialmente boas, dada a posição do país como polo industrial e de serviços de baixo custo. Os grupos industriais indianos, entre os quais o Godrej e o Tata, demonstram entusiasmo especial pelos mercados africanos em crescimento, onde empreendedores de origem indiana operam há décadas.
"Existem imensas semelhanças entre o crescimento econômico que você vê na África e aquilo que você vê na Índia", diz Mukund Govind Rajan, curador de marcas da Tata Sons, apontando que o grupo fatura US$ 2,3 bilhões ao ano na África e emprega cerca de 4.000 pessoas no continente.

INDÚSTRIA

Ao contrário da percepção de que as companhias asiáticas se interessam principalmente por extração de recursos, ele diz, a Tata investe em hotéis, na indústria automobilística, telecomunicações e energia, além da mineração. Outras empresas indianas estão investindo em setores como os bens de consumo e os produtos farmacêuticos.

A abordagem diversificada da Índia quanto à África leva alguns analistas a acreditar que o comércio sul-sul já é forte o bastante para gerar crescimento mesmo sem a China.

"No geral, o comércio sul-sul vem crescendo em diferentes regiões... Se você remover a China, a importância do comércio sul-sul permanece", diz Biswajit Dhar, diretor geral do instituto de pesquisa Research and Information System for Developing Countries.
Mas outros acautelam que os vencedores e perdedores podem ser divididos em dois campos.

É improvável que o comércio sul-sul ajude significativamente os países emergentes que dependem de exportação de commodities, cujos preços sofrerão com a queda da demanda chinesa. Muitas economias latino-americanas, a exemplo de Brasil, Chile e Peru, se enquadram a essa descrição.

Mas aqueles que concorrem com os industriais chineses, como o México, Índia e alguns países asiáticos em desenvolvimento, podem prosperar à medida que a elevação dos custos na China torne as exportações do país menos competitivas em outros mercados emergentes.

"Os países que podem se sair bem são os que dependem mais da exportação de bens industrializados --México, e alguns países emergentes asiáticos--, diz David Rees, da Capital Economics. Em um cenário assim, Mantega, o ministro da Fazenda brasileiro, faria bem em desenvolver ainda mais sua capacidade de interpretar notícias com otimismo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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