Folha de S. Paulo


Opinião: Austeridade não é a única resposta para o problema da dívida

O debate recente sobre a economia mundial acabou por tomar um caminho perturbadoramente simplista. Porque simplesmente não é possível provar de forma definitiva que uma dívida muito alta prejudica o crescimento nacional (se bem os resultados preponderantes o confirmem), há quem argumente hoje que uma dívida alta não é problema, portanto. Para irmos além do debate público recente quanto à literatura acadêmica sobre a dívida pública --já discutimos os nossos resultados quanto à dívida e crescimento, nesse contexto--, é preciso reconectar o debate aos fatos.

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Comecemos por um deles: as relações entre dívidas pública e Produto Interno Bruto (PIB) estão em uma marca historicamente elevada, em muitos países, e em diversos casos superam picos atingidos em tempo de guerra, no passado. E isso sem nem mesmo considerarmos os passivos contingentes nos balanços do setor privado e os programas de previdência e pensões descapitalizados.

No caso da Alemanha, também é provável que exista a necessidade de aliviar ainda mais a carga de dívidas dos países parceiros de Berlim na zona do euro. Há quem afirme que isso não é causa de preocupação, apontando para os surtos de crescimento econômico nos anos posteriores às duas guerras mundiais. Mas as dívidas atuais não serão resolvidas por meio do estímulo à oferta gerado pela desmobilização de soldados no pós-guerra e pelo estímulo à demanda gerado pela suspensão dos controles que pesavam sobre a economia durante as hostilidades.

Sejamos claros: ninguém deveria argumentar em favor de uma estabilização da dívida, e muito menos de medidas para reduzi-la, até que o crescimento esteja mais solidamente enraizado-- se ainda houver escolha, é claro. Diante de acesso na melhor das hipóteses desordenado aos mercados internacionais de capitais e de custos de captação elevados, os países da periferia da Europa não têm tanta escolha.

Mesmo assim, dados os níveis atuais de dívida, medidas adicionais de estímulo deveriam ser adotadas cautelosamente e apenas de maneira seletiva. Uma trajetória de captação mais alta é justificável, desde que haja baixa demanda e baixas taxas de juros, em países nos quais os governos possam identificar projetos de infraestrutura de retorno elevado. Captar recursos para financiar a infraestrutura produtiva eleva o potencial de crescimento em longo prazo, e isso em última análise reduz a razão dívida/PIB.

Temos argumentado consistentemente em favor disso desde o começo da crise.

KEYNESIANOS

Os keynesianos extremados iriam além e abandonariam qualquer resquício de preocupação quanto à redução da dívida em longo prazo. Essa posição tem estado em alta nos últimos meses, em termos retóricos, dados os novos sinais de crescimento fraco. Ela abandona qualquer cautela com relação à dívida e, para citar "Jornada nas Estrelas", pressiona os governos a "ir aonde homem algum já foi".

O arrazoado básico para isso é que os juros baixos fazem da captação um almoço grátis.

Infelizmente, os keynesianos extremados rejeitam de modo exagerado o risco de uma alta nas taxas reais de juros. Ninguém compreende plenamente por que as taxas caíram tanto e tão rápido, e portanto ninguém pode estar seguro sobre a duração do atual momento de juros baixos.

John Maynard Keynes mesmo escreveu "How to Pay for War" [como pagar pela guerra], em 1940, exatamente porque não gostava de ser blasé com relação a grandes deficit --mesmo que em defesa de uma causa tão nobre quanto uma guerra pela sobrevivência. A dívida é uma variável de movimento lento que não pode --e em gera não deveria-- ser reduzida rápido demais. Mas as taxas de juros podem mudar rapidamente.

É verdade que pesquisas identificaram fatores que poderiam se combinar para explicar o declínio acentuado dos juros. Preocupações maiores quanto a eventos futuros potencialmente devastadores, tais como novos colapsos financeiros, podem estar deprimindo as taxas. Da mesma forma, a correlação negativa entre os retornos sobre as ações e os retornos sobre os títulos de longo prazo, embora certamente bastante instável, também faz dos títulos um instrumento melhor de hedge.

Os bancos centrais dos países asiáticos emergentes vêm sendo grandes compradores de títulos de dívida das nações avançadas, e agora talvez os japoneses voltem a sê-lo. Mas será que podemos confiar nesses mesmos fatores para manter baixas as taxas de juros indefinidamente?

JUROS

Os economistas simplesmente não fazem muita ideia de quanto tempo vai demorar para que os juros comecem a subir. Se aceitarmos a possibilidade de que uma alta significativa nas taxas de juros é possível, apenas possível, nos próximos 10 anos, então quaisquer planos para uma expansão ilimitada de dívidas nacionais deveriam nos fazer hesitar.

O que pode ser feito, pois? Devemos recordar que a escolha não é simplesmente entre austeridade fiscal rigorosa e gastos descontrolados. Governos ao longo da História já utilizaram diversas opções. É hora de voltarmos às ferramentas básicas.

Para começar, e acima de tudo, os governos devem estar preparados para liquidar dívidas em lugar de continuar a absorvê-las. O princípio se aplica a dívidas com prioridade de pagamento no caso de instituições financeiras insolventes, a títulos de dívida de países da periferia da Europa e aos títulos hipotecários dos Estados Unidos. Para a Europa, especialmente, qualquer solução razoável envolveria fortes transferências da Alemanha para a periferia. Quanto antes essa transferência implícita se tornar explícita, mais cedo a Europa poderá encontrar o caminho para um crescimento estável.

Existem outras ferramentas. A chamada "repressão financeira", uma forma de tributação não transparente (que incide primariamente sobre os poupadores) pode estar chegando ao banco mais próximo de você. Em sua forma mais simples, os governos forçam a acumulação de dívidas por fundos de pensão, seguradoras e bancos de seus países. A Europa já enfrenta essa situação --e já passou por ela diversas vezes no passado. "How to Pay for War" tratava em grande parte da criação de "audiências cativas" para os títulos de dívida pública.

Para compreender o nosso futuro, é preciso ler o verdadeiro Keynes, e não repetir o que se diz em nome dele.

INFLAÇÃO

Um de nós atraiu consideráveis críticas por sugerir uma inflação moderadamente alta (de entre 4% e 6%, digamos) como possível solução, no começo da crise. No entanto, uma crise forte como não se via há 75 anos é exatamente o momento em que os bancos centrais deveriam sacrificar parte de sua credibilidade para atenuar as dívidas públicas e privadas, e acelerar o processo de redução dos preços reais das casas e demais imóveis.

A reforma estrutural sempre terá de fazer parte da receita. Nos Estados Unidos, por exemplo, o plano bipartidário da comissão Bowles-Simpson ofereceu algumas ideias promissoras para a simplificação dos códigos tributários.

Existe um debate acadêmico em curso sobre os riscos de uma dívida alta demais. Continuamos confiantes quanto à visão prevalecente nesse campo, a de que uma dívida alta está associada a crescimento mais baixo. E com certeza não devemos cair na armadilha de concluir que as dívidas elevadas que existem hoje não são problema. Keynes não desconsiderava o problema da dívida. Por que deveríamos fazê-lo?

KENNETH ROGOFF e CARMEN REINHART são professores da Universidade Harvard. Há outros textos deles sobre o tema disponíveis aqui
Tradução de PAULO MIGLIACCI


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