Folha de S. Paulo


Leyla Perrone-Moisés traduz previsões de François Rabelais para o novo ano

Renato Alarcão
Ilustração de Renato Alarcão

SOBRE O TEXTO Esta página traz traduções inéditas feitas pela professora emérita da USP, referência em letras francesas, para "Prognóstico Pantagruelino, certo, verdadeiro e infalível, para o ano de 1533", que integra a edição francesa "Oeuvres Complètes de Rabelais" (Editora Garnier, 1962).

*

Das doenças deste ano

Neste ano, os cegos verão muito pouco, os surdos ouvirão mal, os mudos não dirão nada, os ricos passarão um pouco melhor do que os pobres, e os sãos, melhor do que os doentes. Vários carneiros, bois, porcos, passarinhos, frangos e patos morrerão, e não será tão cruel a mortalidade dos macacos e dos dromedários. A velhice será incurável este ano, por causa dos anos passados. Os pleuríticos terão dores nas costas. Os que tiverem diarreia irão muitas vezes à privada; os catarros descerão, este ano, do cérebro aos membros inferiores; as doenças dos olhos farão muito mal à vista; as orelhas serão curtas e raras na Gasconha, mais do que de costume. E reinará quase universalmente uma doença horrível e pavorosa, maligna, perversa, assustadora e desagradável que deixará todos muito espantados, sem saber o que fazer, e frequentemente perdidos em devaneios silogísticos sobre a pedra filosofal e sobre as orelhas de Midas. Tremo de medo quando penso nisso, porque vos digo que ela será epidêmica, e Averróis, em Colliget VII, a chama de falta de dinheiro. E tendo em vista o cometa do ano passado e o retrocesso de Saturno, morrerá no hospital um vagabundo catarroso e pustulento, e em consequência dessa morte haverá horrível sedição entre gatos e ratos, entre cães e lebres, entre falcões e patos, entre monges e ovos.

Dos eclipses deste ano

Neste ano haverá tantos eclipses do Sol e da Lua que temo (não sem razão) que nossos bolsos sofrerão de inanição, e nossos sentidos, de perturbação. Saturno será retrógrado, Vênus direta, Mercúrio inconstante. E vários outros planetas não obedecerão ao nosso comando.

Por isso, neste ano, os caranguejos andarão de lado, os puxadores de barcos para trás, as banquetas subirão nos bancos, as brochas nas chaminés e os bonés nos chapéus; os culhões de muitos penderão, por falta de suporte; as pulgas serão, na maioria, negras; o toucinho fugirá das ervilhas, na Quaresma; a barriga irá na frente; a bunda se sentará primeiro; não haverá fava no bolo de Reis; não se encontrará o ás no jogo de cartas, o dado não cairá satisfatoriamente, por mais que o acariciemos, e a sorte desejada não virá com frequência; os animais falarão em vários lugares. O Carnaval triunfará; uma parte das pessoas se fantasiará para enganar a outra, e correrão pelas ruas como loucos e insensatos; não se verá tal desordem na Natureza. E serão criados, neste ano, mais de 27 verbos irregulares, se o gramático Prisciano não os controlar. Se Deus não nos ajudar, não faremos bons negócios; mas pelo contrário, se ele estiver do nosso lado, nada poderá nos fazer mal, como diz o celeste astrólogo que foi arrebatado aos céus. Si Deus pro nobis, quis contra nos? (São Paulo, Epístola aos Coríntios). De fato, nemo, Domine; pois ele é por demais bondoso e poderoso. Aqui, abençoai o seu santo nome, para que ele abençoe o vosso.

Das frutas e bens que crescem na terra

Pelos cálculos de Albumasar, estaremos livres da grande Conjunção, e além disso este ano será bem fértil, com abundância de bens para aqueles que os tiverem. Mas o lúpulo da Lombardia sofrerá um pouco com a friagem; a aveia fará muito bem aos cavalos; não haverá mais banha do que porcos; devido à constelação de Peixes ascendente, será um grande ano para os escargots. Mercúrio ameaça um pouco a salsinha, que não obstante estará a preço razoável. O mal-me-quer e a ancólia crescerão mais do que de hábito, e haverá abundância de peras azedas. Quanto ao trigo, ao vinho, às frutas e legumes, haverá o suficiente, se os votos dos pobres forem ouvidos.

*

FRANÇOIS RABELAIS (c. 1494-1553) foi um escritor, monge e médico francês.

LEYLA PERRONE-MOISÉS, 81, doutora em língua e literatura francesa, é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

RENATO ALARCÃO, 47, é ilustrador e designer.


Endereço da página:

Links no texto: