Folha de S. Paulo


Após 40 anos, sequestradores de mães da praça de Maio são condenados

Xinhua/Martín Zabala
Alfredo Astiz, agente da ditadura conhecido como 'o anjo loiro da morte'

Um dos crimes mais cruéis da ditadura argentina (1976-1983) completou 40 anos neste mês e culminou com a condenação tardia de alguns de seus responsáveis.

Trata-se do famoso sequestro coletivo de Mães da Praça de Maio e de religiosas francesas que se encontravam periodicamente na igreja Santa Cruz. Transformou-se na trama mais ardilosa e famosa do repressor Alfredo Astiz, conhecido como o anjo loiro da morte.

Naquele 8 de dezembro de 1977, familiares de desaparecidos estavam reunidos na paróquia, como vinham fazendo nos meses anteriores, para se apoiarem, organizar atos e recolher dinheiro para anúncios em jornais buscando parentes.

Astiz infiltrou-se entre eles, fez uma lista dos participantes e a entregou a um "grupo de tarefas" (repressores, civis e militares, que caçavam subversivos), que sequestrou 12 pessoas entre os frequentadores das reuniões e as embarcou nos chamados voos da morte.

Esse método de eliminar pessoas jogando-as no rio da Prata, sedadas e com pesos nos pés, para que os cadáveres não flutuassem, era então um recurso comum da repressão para executar opositores. Estima-se que 4.000 pessoas tenham sido mortas assim.

O caso dos sequestros da igreja Santa Cruz é inédito porque os que foram levados dali, pela primeira vez, não eram membros de guerrilhas nem ativistas, e sim mães buscando seus filhos e freiras francesas que as ajudavam.

Há duas semanas, Astiz —já condenado por outros crimes de tortura— e três pilotos que levaram os sequestrados para serem arremessados no rio foram punidos com prisão perpétua.

Quanto aos corpos, alguns foram encontrados na costa uruguaia e identificados, mas a maioria continua sendo procurada.

ARGENMEX

A conexão entre Argentina e México tem uma longa tradição, reforçada pelo fato de o país do norte ter abrigado muitos exilados durante as diversas ditaduras argentinas no século 20. Isso faz com que datas e ícones mexicanos sejam muito celebrados em Buenos Aires.

Um dos sinais disso é a exposição em cartaz no Malba (Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires), "México Moderno, Vanguardia y Revolución", que vai até 19 de fevereiro. Outro é o início das comemorações do 20º aniversário da morte do poeta Octavio Paz (1914-1998) com um ciclo de conferências no mesmo museu, onde suas obras serão lidas e debatidas por críticos especializados no trabalho do Nobel mexicano.

O PERIGO QUE VEM DO SUL

Durante o século 19, havia uma corrente de pensamento na Argentina recém-independente que pregava que o sul do país era um deserto ao qual era preciso levar a civilização —ou seja, as ideias europeias e o empreendedorismo ocidental. Caso isso não fosse feito, seguia o raciocínio, a selvageria que pairava por essas terras destruiria a nova nação.

A teoria encontrou resistência, gerando uma divisão política que resultou na chamada Campanha do Deserto, em que milhares de indígenas foram mortos.

A questão deu também origem a uma imensa produção literária, que inclui desde clássicos de ficção como "Martín Fierro", de José Hernández, até ensaios como "Una Nación para el Desierto Argentino", de Tulio Halperín Donghi (1926-2014), o principal historiador do país.

Curiosamente, hoje voltou-se a escutar entre a elite portenha e do norte do país expressões como "é preciso pacificar o sul", ou "o sul segue habitado pela barbárie", em termos similares aos do século 19.

O movimento parece responder à radicalização das campanhas de grupos de indígenas mapuches, cujas várias vertentes pedem desde autonomia para ensinar e passar adiante sua língua e cultura até recuperação e demarcação de territórios. Há inclusive os que conspiram com grupos de mapuche chilenos, mais numerosos, pela formação de um Estado à parte, a Araucania.

O problema é que alguns grupos têm agido com violência, e o Estado —que de fato deixou o tema de lado por muitos anos— tem respondido com repressão em vez de diálogo. O ano não acabou e já são dois os mortos ligados às manifestações.

Parece incrível que não se aprenda com a história, e que a discussão sobre demarcação de terras e reconhecimento de idiomas e culturas originárias não tenha avançado em termos de leis nem no Chile nem na Argentina, mesmo com sangue ainda sendo derramado.

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SYLVIA COLOMBO, 45, é correspondente da Folha em Buenos Aires.


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