Folha de S. Paulo


Krajcberg lamentava vácuo nas artes e desinteresse do Brasil pela Amazônia

Danilo Verpa/Folhapress
Retrato do artista plástico e escultor polonês Frans Krajcberg em 2013, no Rio

RESUMO Frans Krajcberg, nascido na Polônia em 1921, naturalizado brasileiro e morto em novembro, criou uma das obras mais contundentes do nosso tempo. Leia também perfil do artista feito pelo cineasta e amigo Walter Salles.

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O inverno era mais invernoso nas roupas de Frans Krajcberg. Gorro, cachecol e agasalhos compunham a figura de um desgarrado do verão brasileiro, entregue aos ares gelados de Paris.

Em janeiro de 2012, seu sorriso amenizava um rosto salpicado de marcas das microcirurgias para a retirada de sinais. Krajcberg preparava-se para uma viagem ao Japão e planejava um novo roteiro pela Amazônia, sem nenhum risco de ser um viajante gregário: "Irei para a floresta sozinho ou, no máximo, com um amigo".

Na Avenue du Maine, 21, o Espace Krajcberg ocupava desde 2003 uma casa no "Chemin de Montparnasse" —uma vila de galerias e residências artísticas mantida pela prefeitura de Paris—, que acolheu as obras doadas pelo escultor: quadros, relevos e esculturas com madeiras calcinadas em queimadas ilegais.

Premiado na 4ª Bienal de SP (1957) e na 32ª Bienal de Veneza (1964), ele se tornou expoente internacional da arte ecológica, reconhecido pelo uso original de elementos da natureza (raízes, cipós e troncos) e pelo discurso ambientalista radicalizado em três viagens à Amazônia, nos anos 70.

Ex-combatente antinazista nas trincheiras soviéticas, o escultor-soldado morou em Paris em 1947, e a mudança para o Brasil, em 1948, não afetou as longas temporadas na cidade. Continuou a frequentar o restaurante La Coupole, onde, no pós-guerra, o proprietário aceitava trocar seus quadros por pratos de comida.

"Paris mudou muito. Não é a cidade que eu conheci. Era a capital mundial das artes e da cultura. Essa Paris morreu. Este bairro, Montparnasse, era o lugar dos artistas. Hoje eu saio aqui e não vejo nada", lamentou, num jorro de melancolia, a caminho de casa.

ATELIÊ

"Puxe a cadeira para perto", Krajcberg pediu. "Eu fico aqui." O cheiro de tinta acentuava a antidecoração dos aposentos empoeirados, repletos de quadros, esculturas, malas, livros, papéis e um tapete formado por jornais jogados.

A austeridade de Krajcberg tem um episódio memorável. Num jantar oferecido ao dono da revista "Manchete", Adolpho Bloch, o escultor não se vexou com a falta de guardanapo e depositou folhas de papel higiênico entre taças e talheres.

"Há alguns anos, minhas esculturas estavam malcuidadas. Fiz uma carta dura ao prefeito de Paris [Bertrand Delanoë], dizendo que ia retirar as obras. Mas ele não deixa. Não quer nem ouvir falar disso", envaideceu-se. Não, ele emendou, não pretendia manter o espaço em Paris —uma pausa, um recuo: "Vai ser difícil desagradar ao prefeito".

Numa parte da sala, dormiam as esculturas não expostas no Espace Krajcberg. Abaixando a voz, lançou um olhar conspirativo e dividiu o plano de levar aquelas obras para o Brasil: "Eles não vão nem perceber. Vou levando aos pouquinhos. Quando notarem, elas já estarão fora daqui".

A ideia se derreteu à lembrança dos transtornos para criar um museu no Sítio Natura, em Nova Viçosa (BA), onde se radicou em 1972, a convite do arquiteto Zanine Caldas, e construiu uma casa no alto de um pequizeiro, cercado de mata Atlântica.

O acervo seria incorporado pelo governo baiano após sua morte. "Fui roubado pela oitava vez. Isso me dá um desânimo", afirmou, erguendo as mãos. Somente no ano anterior, uma quadrilha assaltara três vezes o sítio, levando dinheiro, obras de arte e objetos pessoais.

"O governador [Jaques Wagner] está trabalhando para criar o espaço de minhas obras em Salvador. Confesso que não tenho mais tanta disposição. Não me sinto com 90 anos, mas a verdade é que não posso mais brincar."

"Quero lhe mostrar uma coisa", disse, procurando os jornais. Uma entrevista de Pelé publicada naquela semana pelo "Le Monde"? "Ah, eu queria fazer uma surpresa! Mas você já leu. O que Pelé diz?" O rei analisava os preparativos do Brasil para a Copa de 2014. "Então não vou nem ler", irritou-se, descontente com a prioridade dos gastos esportivos. Angustiava-lhe o desinteresse dos brasileiros pela Amazônia.

"Mudaram a lei [Código Florestal] e nenhuma voz se levantou para defender os povos da floresta. Ninguém quis saber. Poucos conhecem o Brasil. Poucos foram à Amazônia. Ela está sendo destruída. A primeira imagem que eu vi foram seis índios mortos, pendurados nas árvores. Ninguém se importa com nada."

Espiadela no relógio, a despedida: "Vou ter que lhe mandar embora". Na encolhida luz de inverno, Krajcberg caminhou devagar até a porta.

PRIMAVERA

Em maio de 2014, a primavera. O humor de Krajcberg serenava com os jardins floridos de Paris. Num restaurante de culinária indiana, usava um boné verde-oliva que lhe conferia aparência de soldadinho de chumbo. O orgulho era verde e amarelo: "Vai abrir a exposição de 'Guerra e Paz', de Portinari, no Grand Palais. Uma noite brasileira em Paris", celebrou.

O segundo encontro ficaria para o dia seguinte, em seu espaço em Montparnasse. Encontrei-o na escuridão. Puxou uma escada azul para prender a cortina, e logo o sol invadiu a sala ensombrecida.

"Eu não penso na minha idade", disse, e narrou uma visita a Oscar Niemeyer, num hospital em que ambos estavam internados no Rio. O escultor ouviu um conselho do amigo centenário: "Não pense na sua idade. Trabalhe".

A velhice fora expulsa dos pensamentos diários: "Eu me sinto sempre jovem, pra começar tudo de novo", disse. "A coisa com que estou sonhando agora é viajar pra Amazônia. Visitar de novo essa grande riqueza que o Brasil possui e está sendo destruída".

Naquele dia ele insistiu num tema: o vácuo das artes. "A Bienal de São Paulo mostra a decadência do movimento artístico mundial. A Bienal de Veneza é a mesma coisa. O que está acontecendo que não se discute o grande vazio no movimento artístico?", questionou Krajcberg, que dali a dois anos seria homenageado pela 32ª Bienal de São Paulo.

"Difícil falar" eram palavras recorrentes em conversas sobre a Segunda Guerra. Difícil falar do dia em que bateu à porta do pintor Chagall. "Eu conheci a tragédia da família dele na Rússia. Ele caiu no chão, chorando, ao saber da verdade. Sobre como foi destruída a família dele em Vitebsk."

Krajcberg fez então um silêncio espaçoso. "Eu não devia ter falado. Ele chorou sem parar. E não me deixou sair da casa dele. Fiquei três meses. Chagall me mandou pro Brasil." Desconhecia o país sul-americano, mas, ansioso para abandonar a Europa, aceitou a sugestão do amigo.

Persistente no sotaque do artista, a Polônia era reencontrada unicamente nos pesadelos. Todos os Krajcberg morreram no Holocausto. "Nem quero pisar nesse país. Nunca mais!"

A mãe, Bina Krajcberg, definiu o temperamento militante do filho. "Tenho muita memória da minha mãe, que foi líder do partido comunista. Essa memória nunca me saiu."

Uma leve imodéstia de veterano de guerra desabrochou ao evocar as condecorações recebidas no fim do conflito. "Eu fui oficial, ganhei de Stálin a grande medalha. Todo mundo sabe que era muito raro alguém ganhar uma medalha da mão do Stálin. Ela me foi roubada em Nova Viçosa."

Como se falasse demais de si mesmo, apressou o desfecho da entrevista. As suas mãos caíam pelos lados da cadeira quando lamentou outra vez: "O movimento das artes plásticas mundial não existe mais". Um silêncio, uma ênfase: "Nem sinal".

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CLAUDIO LEAL, 35, é jornalista.


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