Folha de S. Paulo


Romance inédito de argentino aborda memórias de família sob a ditadura

SOBRE O TEXTO O trecho nesta página integra o livro "O Espírito dos Meus Pais Continuava a Subir na Chuva", que a Todavia lança em janeiro. O romance tem como protagonista um jovem escritor que retorna à Argentina porque seu pai está morrendo. Ele se vê rodeado por lembranças de sua infância nos tempos da ditadura dos anos 1970.

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Mariana Zanetti
Ilustração de Mariana Zanetti

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Entre março ou abril de 2000 e agosto de 2008, oito anos em que viajei e escrevi artigos e morei na Alemanha, o consumo de certas drogas fez com que eu perdesse quase completamente a memória, de modo que as lembranças desses anos –pelo menos as lembranças de uns noventa e cinco meses desses oito anos– são um pouco vagas e imprecisas: me lembro dos quartos das duas casas em que morei, me lembro da neve entrando nos meus sapatos quando eu me esforçava para abrir caminho entre a entrada de uma dessas casas e a rua, me lembro que depois eu jogava sal e a neve ficava marrom e começava a se dissolver, me lembro da porta do consultório do psiquiatra que me atendia, mas não me lembro do seu nome nem como cheguei até ele. Ele era ligeiramente calvo e costumava me pesar cada vez que eu ia à sua consulta, creio que uma vez por mês ou algo assim. Ele perguntava como eu estava, depois me pesava e dava mais remédios. Alguns anos depois de ter ido embora dessa cidade alemã, voltei lá e refiz o caminho até o consultório desse psiquiatra e li seu nome na placa ao lado das outras campainhas do prédio, mas era só um nome, nada que explicasse por que eu o visitava e por que ele me pesava cada vez que me via nem como era possível que eu tivesse deixado a minha memória ir embora assim, pelo ralo; naquela vez, fiquei pensando em bater à sua porta e perguntar-lhe porque eu o visitava e o que tinha acontecido comigo durante aqueles anos, mas depois me dei conta que precisaria ter marcado uma consulta, que de qualquer modo o psiquiatra não devia se lembrar de mim e, além disso, que na verdade eu não tenho tanta curiosidade assim sobre mim mesmo. Talvez, um dia, algum filho meu queira saber quem foi seu pai e o que fez durante esses oito anos na Alemanha e vá até a cidade e dê uma volta por lá e, quem sabe, com as indicações de seu pai, consiga chegar ao consultório do psiquiatra e descobrir tudo. Acho que os filhos, em algum momento, sentem necessidade de saber quem foram seus pais e saem em busca de respostas. Os filhos são os detetives que os pais lançam no mundo para que um dia retornem e contem a eles sua história e, assim, eles mesmos possam compreendê-la. Os filhos não são os juízes dos pais, já que não podem julgar de maneira realmente imparcial alguém a quem devem tudo, inclusive a vida, mas podem tentar colocar ordem em sua história, restituir o sentido que foi apagado pelos acontecimentos mais ou menos pueris da vida e sua acumulação, e depois proteger essa história e perpetuá-la na memória. Os filhos são os policiais dos pais, mas eu não gosto de policiais. Nunca se deram bem com a minha família.

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Meu pai adoeceu no fim dessa época, em agosto de 2008. Um dia, telefonei para minha avó paterna, acho que no aniversário dela. Minha avó me disse para eu não me preocupar, que tinham levado meu pai ao hospital só para um exame de rotina. Perguntei a ela do que estava falando. Um exame de rotina, nada de mais, respondeu minha avó; não sei por que está demorando tanto, mas não é nada importante. Perguntei há quanto tempo meu pai estava no hospital. Dois dias, três, ela respondeu. Depois que desliguei, telefonei para a casa dos meus pais. Não havia ninguém lá. Então liguei para minha irmã; atendeu uma voz que parecia ter saído do fundo dos tempos, a voz de todas as pessoas que já estiveram algum dia no corredor de um hospital esperando notícias, uma voz cheia de sono, cansaço e desespero. Não queríamos que você se preocupasse, me disse minha irmã. O que aconteceu?, perguntei. Bom, respondeu minha irmã, é muito complicado para explicar agora. Posso falar com ele?, perguntei. Não, ele não pode falar, ela respondeu. Estou indo aí, eu disse, e desliguei.

4

Eu e meu pai não nos falávamos há algum tempo. Não era nada pessoal, eu só não costumava ter um telefone à mão quando queria falar com ele, e ele não tinha como me ligar se quisesse. Alguns meses antes de ele adoecer, eu tinha deixado o quarto que alugava naquela cidade alemã e começado a dormir nos sofás de pessoas conhecidas. Eu não fazia isso por falta de dinheiro, e sim pela irresponsabilidade que eu considerava a consequência natural de não ter casa nem obrigações, de deixar tudo para trás. E na verdade não era ruim, mas o problema é que, quando você vive assim, não pode ter muitos pertences; então, pouco a pouco, fui me desfazendo dos meus livros, dos poucos objetos que havia comprado desde a minha chegada à Alemanha e da minha roupa; só conservei algumas camisas, porque descobri que uma camisa limpa pode lhe abrir as portas de uma casa quando você não tem aonde ir. Eu costumava lavá-las à mão de manhã enquanto tomava banho em alguma daquelas casas, depois as deixava secando dentro de um dos armários da biblioteca do departamento de literatura da universidade em que eu trabalhava, ou no gramado de um parque onde eu costumava matar o tempo antes de sair à procura da hospitalidade e companhia do dono ou da dona de algum sofá. Eu estava só de passagem.

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PATRICIO PRON, 42, argentino residente na Espanha, é escritor e crítico literário.

GUSTAVO PACHECO, 45, é diplomata, escritor e tradutor.

MARIANA ZANETTI, 40, ilustradora, vive atualmente na Alemanha.


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