Folha de S. Paulo


Escritora Ana Miranda narra encontro com John Updike, sua paixão literária

Rio de Janeiro, praia do Flamengo. Março de 1992. Otto Lara Resende estaciona seu fusca um pouco adiante da portaria do apartamento de nosso editor, Fernando Moreira Salles.

Otto não vai ao jantar em homenagem ao escritor norte-americano John Updike, teve um imprevisto. Diz que não posso ser vista saltando de um carro tão modesto, e sorrio, "Que bobagem, Otto".

Uso um vestido de lã e sandálias, sinto-me inadequada, mas me lembro de uma foto de Clarice Lispector num casaco de pele e sandálias, e isso me consola. Coisas de escritoras.

Entro no prédio. Logo em seguida, chega uma limusine trazendo o homenageado da noite e Rubem Fonseca com a esposa. Updike usa terno e gravata. No elevador, Rubem tira —delicada e inesperadamente— a gravata do americano, a guarda no bolso do paletó dele e desabotoa seu colarinho.

Na sala, grande parte da literatura brasileira trava conversas amigáveis: a voz de João Ubaldo troa, há editores, como Luiz Schwarcz, e cineastas, como Walter Salles. À entrada, sobre uma mesa, livros dos convidados com dedicatória ao visitante. Rubem estava certo: não há ninguém usando gravata.

Sou apresentada a Updike, mas me embaraço, esqueço a fala que havia preparado sobre a história de Minas Gerais —ele acaba de chegar de uma viagem a Ouro Preto. E digo frases formais, gentilezas. Jantamos.

No café, todos novamente espalhados pela sala, vejo o olhar encantado de Updike a escutar Antonio Callado com seu perfeito sotaque adquirido na BBC —os americanos reverenciam o acento britânico. Pouco depois, percebo que o convidado de honra está sozinho diante do vitral que dá para a paisagem noturna da baía de Guanabara.

Vou fazer-lhe companhia. Ele me pergunta onde está a constelação do Cruzeiro do Sul. Dali não se pode vê-la, digo, e Updike me pede que o leve ao lugar de onde poderá avistá-la. Vamos na limusine, o motorista, Updike, Thea Fonseca, Rubem e eu. Paramos ao longo da praia do Leblon. É uma noite estranha, há uma névoa baixa que deixa vermos apenas o topo da abóbada celeste.

E lá está, mostro, a constelação feita de apenas cinco estrelas. Updike tenta discernir o desenho da cruz. Estendo o dedo indicador, e ele traz o rosto para a seta do meu braço, finalmente compreendendo a formação estelar. "Tão pequena!", ele se espanta.

Digo que achei a estátua da Liberdade também muito pequena. Ele nunca vai se esquecer daquelas estrelas na ponta de meus dedos, como anéis de diamantes, diz.

E não se esqueceu. O casal Fonseca foi a pé para casa, logo ali, e Updike foi me deixar no meu prédio, uns quarteirões adiante. No dia seguinte, quando cheguei em casa depois de um almoço, ele tinha estado lá pela manhã e deixado um bilhete.

Liguei para seu hotel, e logo estava ele entrando suavemente em minha casa, olhando os livros, o jardim, fazendo perguntas e comentários encantadores.

Magro, alto, róseo, cabelos quase brancos. Era gentil, meigo, sorria como se estivesse tonto de uma pancada na cabeça. Olhos de águia. Observava tudo, percebia tudo.

Updike estava tramando um romance passado no Brasil e, a partir daquele encontro, trocamos cartas nas quais ele procurava conhecer nossos mistérios e nossas belezas —que já o seduziam desde criança, quando assistia a filmes hollywoodianos em que dançavam e cantavam uma mulher com uma cesta de frutas tropicais sobre a cabeça e um papagaio malandro.

O Brasil era um lugar idílico em que ele via promessas de liberdade e felicidade. Fui levá-lo ao aeroporto e ele deixou-me um leve beijo na alça fina sobre o ombro, como algo para sempre.

Há uma espécie de sentimento que somente escritores e leitores experimentam: a paixão literária. Difícil de ser compreendida, ela é movida por livros e os constrói. Nossas cartas duraram cerca de um ano, o tempo durante o qual ele escrevia o romance "Brazil".

*

ANA MIRANDA, 66, é romancista e poeta. Venceu o prêmio Jabuti com "Boca do Inferno" e "Dias & Dias" (Companhia das Letras). Seu último livro é "Xica da Silva: A Cinderela Negra" (Record).


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