Folha de S. Paulo


Roteirista de programa com Lázaro Ramos escreve sobre 1º chefe negro

Globo/Estevam Avellar
Equipe do programa "Lazinho com Você", com o redator-chefe Elísio Lopes Jr. (mais alto à direita)

RESUMO Após ter seu primeiro chefe negro —Elísio Lopes Jr., redator-chefe do novo programa de Lázaro Ramos na TV Globo—, autor reflete sobre questões raciais e discute a importância de democratizar os postos de comando no Brasil para corrigir desigualdades sociais derivadas de nosso passado escravagista.

*

"Tudo o que você precisa saber sobre o Brasil é: tenho mais de 40 anos e nunca tive um chefe negro."

Essa sentença cartão de visitas já foi dita por mim para diversos estrangeiros curiosos. Ao filósofo Jean Baudrillard, em um jantar formal nos anos 90. Ao músico Kurt Cobain, nos bastidores de um festival de rock no Rio de Janeiro. A um tenente americano, em um acampamento na fronteira do Afeganistão com o Irã. Ao dono da pousada onde me hospedei em Tóquio, a uma espectadora da primeira sessão em Estocolmo de um dos meus longas-metragens, a um vendedor de óculos escuros numa rua sem asfalto nem saneamento em Ijebu-Ode, cidade ao sul da Nigéria.

O único que reagiu com surpresa e decepção foi o nigeriano.

Também já usei a frase como encerra conversa com brasileiros. Com o geógrafo Milton Santos, num congresso em Buenos Aires. Tomando café na casa de Luis Fernando Veríssimo, em Porto Alegre. Em conversa por e-mail com Caetano Veloso sobre uma crônica do angolano José Eduardo Agualusa. Com Daniela Thomas, após uma sessão de "Vazante" para roteiristas da Globo. Com mãe Vitória, ialorixá de um terreiro em Ilhéus (BA).

A única que reagiu com um sorriso e um afago foi mãe Vitória.

Bruna Bernardo
Dodô Azevedo, que é roteirista do programa "Lazinho com Você" sob a chefia de Elísio Lopes Jr.

Tudo o que escrevo aqui é a soma do que vivi. E essa soma é produto do que meus pais viveram antes de mim, e do que meus avós viveram antes de meus pais. Meus avós nunca tiveram um chefe negro. Meus pais nunca tiveram um chefe negro.

A questão racial no Brasil é anestesiada com retóricas toscas e primárias. Coisa de parede de banheiro de escola de elite só para meninos —e, talvez por isso, tão populares entre homens: "Não há uma questão negra. Somos todos mestiços", "Raça não existe", "Brancos também têm direitos", "A ditadura das minorias".

TIPOLOGIA

Em nosso país existe uma figura antiga: o negro conveniente. Aquele que diverte com sua arte, que nos encanta com samba no pé e dribles em campo, que comove com sua alegria, que fascina com seu corpo.

O negro conveniente não incorpora a cultura afro em seu cotidiano e não se engaja em questões de raça. Ele perde a oportunidade de apontar o racismo que vê no dia a dia, mas não perde o amigo.

Ele anula sua essência —que em última instância é, para todo negro brasileiro, ser produto da escravidão— para fazer parte de um grupo no qual não se discute raça e se faz de conta que o racismo não existe.

É o fenômeno da nova geração de jogadores de futebol no Brasil: diferentemente dos jogadores norte-americanos, que fazem protesto antes dos jogos contra os abusos da polícia contra negros, os jogadores profissionais brasileiros fingem que nada parecido acontece no Brasil. São negros, mas fingem para si mesmos que não são.

O negro conveniente nos faz esquecer que nossa sociedade e todos esses problemas ditos insolúveis —educação, violência, corrupção— advêm de um simples fato: termos sido uma das maiores nações escravagistas da humanidade.

O cais do Valongo (RJ), sede do comércio de escravos africanos nos séculos 18 e 19, recebeu recentemente o título de Patrimônio Mundial da Unesco e é tido como o maior porto escravagista da história.

Tudo que fomos, tudo que somos e tudo que seremos deriva disto. Mas às vítimas desse holocausto racial que definiu nossa sociedade não é dado o direito de contar essa história. Negros nunca tiveram a redação final sobre nenhuma história. Muito menos sua própria.

Há exceções: os poucos negros que conquistam algum lugar de fala. Mas esses são induzidos a contar suas histórias como se a cor de sua pele não tivesse determinado quem são.

E assim o fazem, receosos de serem classificados como um outro tipo de negro, este sim novidade no Brasil. Um tipo ainda mais divertido e fascinante, porque belo, atento, forte, autoconfiante e intenso: o negro inconveniente.

A atriz Taís Araújo, depois de recente fala denunciando o racismo, foi duramente ridicularizada e criticada —em grande parte por homens brancos, desde o letrado secretário de Educação do Rio até os iletrados e populares youtubers. Taís passou de negra "linda e cheirosa" a negra inconveniente.

Alguns jovens atores, atrizes e críticos de cinema negros, em debate após a exibição de "Vazante" num festival, criticaram violentamente a equipe do filme por reforçar estereótipos de representação do negro na ficção. Negros belos, atentos, fortes, autoconfiantes e intensos: negros inconvenientes.

Negros necessários.

DISTORÇÕES

O racismo é, na verdade, a repulsa primitiva a compartilhar a carniça que seca sob o sol. Não é o conceito de raças que causa racismo, nem as guerras étnicas e os outros horrores que dele derivam. Ele é, e sempre foi, causado pela disputa por privilégios.

O conceito de raças é, em si, uma coisa brilhante: estabelece que não somos uma única família. Devemos, então, conviver uns com os outros, não por obrigação consanguínea, mas por amor e fascínio por nossas diferenças.

Mas a definição racial foi distorcida e se tornou, nas mãos brutas inábeis do homem primitivo, uma ferramenta de aniquilação do outro para manter posses. A coisa certa nas mãos erradas. O osso na mão do hominídeo em "2001 - Uma Odisseia no Espaço". Uma taça de cristal na mão de um feitor de engenho.

A diferença entre homem —esta coisa que não deu certo— e gente —esta coisa infinita e imprevisível que embeleza o mundo— é uma questão fundamental para meu primeiro chefe negro.

Metade da minha vida já se foi, e agora fui colocado sob a chefia de Elísio Lopes Jr., experiente dramaturgo, roteirista de cinema e TV, diretor artístico e produtor cultural. Elísio é negro e é júnior. Carrega o nome do pai. Também ele é a soma de tudo que viveu e o produto do que seus pais e seus avós viveram.

Globo/Patricia Stavis
Lázaro Ramos em gravação do programa "Lazinho com Você", cujo redator-chefe é Elísio Lopes Jr.

Nos últimos cinco meses, Elísio chefiou uma equipe que escreveu o programa "Lazinho com Você", apresentado por Lázaro Ramos, que entra no ar na tarde deste domingo (10) na TV Globo. Elísio é meu primeiro chefe negro e me informam que é o primeiro redator-chefe negro de um programa nos 67 anos de TV aberta no Brasil.

"Lazinho com Você", que foi escrito por um grupo de roteiristas chefiados por um negro, é um programa sobre gente. Não sobre o homem, mas sobre gente, que é a coisa mais épica que existe.

Histórias de gente branca, preta, mulata e amarela. Histórias que foram escritas por um grupo de roteiristas chefiados por um negro, mas não só: decidiu-se que o programa seria colaborativo, e o público foi chamado a dar sua contribuição por meio de um site.

O meu primeiro chefe negro se interessa em ouvir o outro, e dezenas de milhares de pessoas contribuíram para o programa com trilha sonora, pautas, ideias, vinhetas: 40 mil pessoas de todo o Brasil. Gente querendo ser ouvida, gente querendo se expressar, dizer o que pensa do mundo, ter seu lugar e espaço de fala.

Esse interesse pelo outro, por ouvir o outro, é da ancestral e pouco estudada filosofia africana. Ouvir o outro, definitivamente, é coisa de preto.

Uma das ideias que executamos foi um quadro de realizações de sonho, parecido com os quadros assistencialistas que prometem concretizar o desejo de um pobre. Só parecido. Em um dado momento, ocorre uma reviravolta: quem decide qual sonho será realizado são as pessoas que tinham se candidatado para ter seus sonhos realizados.

Em um passe de magia —certamente negra—, o foco vai de quem tem seu sonho realizado para quem abre mão de seus próprios sonhos, mas que se realiza pela concretização do sonho do outro. Gente que resolveu compartilhar seu privilégio e foi feliz por isso.

CHEFE NEGRO

São lições do chefe negro: ouvir e, com seu olhar pouco requisitado, transformar e transcender um produto de televisão velho. O que seria do Brasil se chefes negros fossem algo comum?

Eu sou chefe deste pedaço de papel, mas, por causa da cor da minha pele, nunca serei, nem meus filhos, nem meus netos —a soma de tudo que vivemos—, proprietários de um jornal. Por maior que seja nossa competência ou mérito. Não neste Brasil. Não na iniciativa privada.

Entender isso é entender a importância do Estado e de seus concursos públicos e cotas para reversão dos efeitos da catástrofe escravagista que assolou este país, incomparável com qualquer outra mundo afora. Entender isso é entender o único problema fundamental deste país e, com isso, entendê-lo com coragem e afeto.

Na liturgia conservadora, o negro pode sorrir, pode ser encantador. Mas não pode ser tudo isso e querer que o mundo melhore. Porque, para o conservador, querer que os privilégios sejam distribuídos é querer que mundo mude —e não mais se conserve.

A única coisa verdadeiramente apartidária, que une direitas e esquerdas, letrados e iletrados, é o primitivo impulso de conservar privilégios. Hoje não há privilégio mais disputado do que o lugar de fala. Quem vai contar a versão dos fatos. O poder da redação final de uma narrativa.

Geralmente, quando se dá espaço para um negro escrever, pedem para que escreva sobre a experiência de ser negro. Não parece interessar a opinião de um negro sobre mais nada do que ser negro, falar de favelas, violência, pobreza.

Ninguém parece querer saber a opinião de um negro sobre física quântica. Mesmo com toda a ciência e a visão de mundo africanas serem fundadas, há milênios, no princípio da dualidade da matéria.

Ninguém parece querer ler, por exemplo, um romance de fantasia escrito por um negro. Mesmo quando "O Senhor dos Anéis" e toda a mitologia nórdica têm origem em contos persas ancestrais que compõem o Shahnameh (não editado no Brasil e mal editado no mundo), no qual todos os personagens têm a pele escura.

O que seria do Brasil se chefes negros fossem algo comum de se ver? Somos eu —chefe deste texto— e Elísio Jr. —chefe do texto do programa de TV— filhos de Oxalufã, o mais velho dos orixás africanos.

Somos gente serena diante da finitude das coisas. Gente ciente de que as coisas chegam ao fim para que algo comece. Gente que está experimentando o raro direito à palavra final. O direito de escolher a última palavra de um texto. Gente.

*

DODÔ AZEVEDO, 46, doutor em letras, roteirista e cineasta, é autor dos romances "Pessoas do Século Passado" (Rocco) e "Fé na Estrada" (Leya).


Endereço da página:

Links no texto: