Folha de S. Paulo


Instagram revoluciona uso de imagens e influencia artistas e museus

RESUMO Autora discute a produção e a circulação de obras de arte na era do Instagram. Aplicativo tem transformado a relação com as imagens, a ponto de haver quem compare o fenômeno a movimentos como futurismo e surrealismo, em termos de impacto e criação de linguagem. Artistas e museus adaptam-se à nova tendência.

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"Domine, Quo Vadis?" é o título de uma pintura de Annibale Carracci (1560-1609) que retrata um episódio pouco representado na arte: um encontro de são Pedro com Jesus ressuscitado, enquanto o apóstolo planejava fugir da perseguição aos cristãos.

Acuado e surpreso, como aparece no canto direito do quadro, Pedro teria feito a pergunta do título ("Senhor, aonde vais?"), ouvindo de Jesus que iria até Roma para ser crucificado pela segunda vez. A partir desse episódio, o apóstolo desiste de fugir e volta à cidade, onde morre como mártir.

A pintura de Carracci, artista italiano da escola de Bolonha e precursor do barroco na Itália, pertence ao acervo da National Gallery, em Londres, mas não está entre as obras mais famosas do museu. Sua reprodução, pouco conhecida, apareceu recentemente no Instagram do artista Nino Cais (@ninocais), sobreposta a uma fotografia de dois homens nus.

A montagem encontra eco no contexto das polêmicas sobre nudez e tentativas de censura em exposições, iniciada em setembro com o encerramento da mostra "Queermuseum", em Porto Alegre, da qual Nino fazia parte.

Um quadro de temática religiosa vedando uma foto de nus masculinos, enquanto Jesus surge também com o corpo desnudo; o jogo de pernas em contraposição, como numa dança descompassada, cada um a seu modo; o braço de Jesus apontando outro caminho à frente, quase um gesto de resistência que cabe bem aos tempos de perseguições políticas e religiosas de hoje.

Pouco do que a obra originalmente representava permanece nas leituras dessa nova imagem. Por outro lado, o alcance proporcionado pelas redes sociais faz com que sua reprodução possa ser vista ao mesmo tempo por milhares de pessoas, algo inimaginável pelo artista ao retratar o episódio do "Quo Vadis?" no começo do século 17.

MUNDO DE IMAGENS

A composição integra uma série recente iniciada por Nino no Instagram, um espaço que ele define como uma "biblioteca de pensamentos, um caderno de anotações visuais".

Para quem coleciona e reinventa imagens de todos os tipos como ele, a rede estaria mais para uma biblioteca de Babel, um arquivo sem fim de quase tudo que se pode encontrar no mundo hoje, de obras de arte aos registros mais banais. Goste-se ou não, a onipresença das câmeras de celular é uma realidade irremediável.

Em "O Museu Imaginário" (1947), o francês André Malraux parece antecipar boa parte do fenômeno que vivemos hoje com a intensa circulação de imagens de obras de arte pelas redes sociais.

Ele define a ideia de imaginário associada aos museus como o resultado de diversos processos de metamorfoses. O primeiro ocorre quando os objetos são retirados de seu contexto original e levados para o museu, onde se desligam de sua função anterior e podem ser contemplados como obras de arte.

Essa mudança ocorre especialmente no século 19, com a criação dos museus públicos modernos. São esses espaços, para ele, que impõem uma nova relação com a ideia de obra de arte. "Um crucifixo românico não era, de início, uma escultura; a Madona de Cimabue não era, de início, um quadro; nem sequer a Atena de Fídias era, de início, uma estátua", escreve.

Também no século 19 foi criada a fotografia, responsável por outro processo de metamorfose das obras. Nos livros de arte, elas passam a ser contempladas sem nenhuma indicação de escala; uma escultura monumental pode ser vista nas mesmas proporções de uma pintura pequena.

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A era digital parece ter elevado à enésima potência esse processo de transformações. As obras, reproduzidas incessantemente pela câmera do celular e publicadas em redes sociais, passam a circular sem origem e destino definidos.

Para o americano David Joselit, autor de "After Art" (depois da arte), vivemos na era da imagem nômade —e esse processo de circulação é o contexto mais relevante hoje no campo artístico.

O historiador da arte argumenta que o conceito de aura de Walter Benjamin —espécie de essência de uma obra original, um "aqui e agora" da experiência contemplativa— já não é compatível com o atual cenário de difusão de imagens, especialmente com a internet móvel. Para Joselit, a ideia de que a arte pertença a um tempo e lugar específico é impensável hoje.

A obra de Carracci que aparece na colagem de Nino, por exemplo, foi encontrada em uma edição de bolso sobre pinturas italianas, um dos inúmeros livros acumulados na mesa de seu ateliê em São Paulo, de onde nascem suas colagens.

Na imagem que ele criou e postou no Instagram, a pequena reprodução parece recobrar dimensão próxima ao formato de um quadro, com tamanho suficiente para esconder partes mais explícitas dos corpos nus da foto de trás.

INSTAGRAMISMO

Desde que foi lançado, em outubro de 2010, o Instagram vem transformando a maneira como nos relacionamos com as imagens. Os estimados 700 milhões de usuários do aplicativo compartilham cerca de 80 milhões de fotos diariamente.

Lev Manovich, teórico em cultura digital e um dos principais pesquisadores de redes sociais na atualidade, cunhou o termo "Instagramism" (instagramismo) para definir esse fenômeno contemporâneo, comparando-o, em termos de impacto e produção de linguagem visual própria, às revoluções trazidas pelos "ismos" dos movimentos modernos de vanguarda na virada do século 20, como o futurismo e o surrealismo.

A diferença, para ele, está no alcance que o instagramismo possibilita pela cultura do compartilhamento, permitindo autoria compartilhada na definição da linguagem.

A particularidade do Instagram em relação a outras redes sociais está na primazia da imagem e nas possibilidades que ela oferece para o usuário controlar a apresentação.

Esse controle se dá tanto pelas escolhas no grid de três colunas —a definição da sequência de imagens se aproxima de um papel curatorial, transformando as interfaces pessoais em pequenas galerias— como pelas inúmeras ferramentas de edição disponíveis.

Contrariando, de certa forma, a ideia de espontaneidade que acompanhava o aplicativo em sua criação, postar uma foto passou a envolver uma série de decisões que terminam por moldar a identidade de um perfil e determinar as conexões que irá atrair.

Veridiana Scarpelli
Ilustração de Veridiana Scarpelli

Essas decisões, em geral, não são nada aleatórias: envolvem conhecimentos específicos difundidos pela cultura do "how-to", vídeos e textos tutoriais que ensinam como criar um perfil esteticamente coerente, quais os melhores horários para postagens etc.

A pesquisa de Manovich, compilada no livro "Instagram and Contemporary Image" (Instagram e imagem contemporânea, 2017), é o primeiro trabalho multidisciplinar sobre a rede, combinando estudos de mídia, história da arte e análise de dados. Seu laboratório em Nova York conta mais de 16 milhões de imagens, arquivadas desde 2012.

Com esse acervo, Manovich desenvolveu projetos como "On Broadway" (2015) —instalação feita a partir de um mapeamento de postagens ao longo da avenida que atravessa Nova York, utilizando geolocalizadores— e "Selfiecity" (2014) —estudo sobre este tipo de foto tendo como material 3.200 selfies postadas em cinco cidades do mundo, incluindo São Paulo.

Como em outras redes sociais, o Brasil tem forte presença no Instagram: aparece como o terceiro país com maior movimentação (5,79%), atrás da Rússia (8,61%) e dos Estados Unidos (17,12%).

SMARTPHONES

A criação do Instagram também influenciou uma mudança importante na forma como os museus lidam com a popularização de smartphones nas galerias.

Em 2011, o Metropolitan Museum of Art de Nova York retirou as placas que pediam aos visitantes para guardar os celulares. Aos poucos, a iniciativa foi adotada por instituições no mundo todo. Fotos e postagens das obras passaram a ser incentivadas como poderosa estratégia de marketing.

Se a invenção da fotografia no século 19 responde por enorme transformação na arte, a popularização de celulares com câmeras e da internet móvel vem promovendo mudança igualmente significativa.

Transformadas em uma nova imagem já no primeiro contato —o ato de ver e fotografar parece ter se tornado um só—, as obras existem cada vez mais em uma dimensão imaginária, reproduzidas a todo tempo.

Por outro lado, pela lógica das redes, vê-las ao vivo em museus nunca foi tão importante —o que é um grande paradoxo, já que a contemplação dura em geral alguns poucos segundos, tempo suficiente para fazer um "story" ou postar a foto com o geolocalizador.

Nesse sentido, Malraux parece trazer contribuição interessante aos tempos atuais ao afirmar, ao contrário de Benjamin, que as reproduções não representam ameaça à ideia da aura.

Para o francês, as obras sobrevivem ao esquecimento graças aos museus imaginários dos livros de arte. "[Aquela imagem] leva-nos a contemplar as obras-primas que nos são acessíveis; não a esquecê-las; e, sendo inacessíveis, que conheceríamos nós, sem a reprodução?"

OBRA OU IMAGEM?

Os artistas tampouco passaram incólumes por essas transformações. Alguns deles já utilizam o Instagram como meio específico para o desenvolvimento de trabalhos, ainda que nem sempre esteja claro o que distingue uma obra propriamente dita de uma simples imagem postada na rede.

"O Instagram é sempre a primeira exibição do meu trabalho", afirma Nino. Essa galeria digital, hoje com 12 mil seguidores, às vezes é usada para testar esboços de alguma nova série, outras vezes serve de abrigo definitivo: muitas obras começam, terminam e existem apenas ali, ao lado de selfies, trabalhos de outros artistas e raras fotos de viagens.

As colagens com as pinturas italianas —que incluem ainda uma interessante composição com uma imagem renascentista de são Sebastião (1477-79), de Antonello da Messina, dividindo a tela com outro nu masculino em pose atlética— a princípio foram concebidas exclusivamente para o Instagram. "Mas pode ser que depois virem outra coisa", diz Nino.

O tema ganhou força nos últimos meses, quando a artista americana Cindy Sherman liberou ao público o acesso de sua conta no Instagram (@_cindysherman_), até então mantida privada e com um pseudônimo.

As imagens mais recentes mostravam a americana interessada na já quase banalizada lógica das selfies, utilizando ferramentas de edição de aplicativos digitais, entre eles o Facetune e o simulador de maquiagem Perfect365.

Mas seu interesse não está no uso que em geral se faz desses recursos. O que ela procura não é a perfeição da imagem, e sim a sua deformação, sinalizando como o uso extremo desses artifícios produz um resultado quase grotesco.

Talvez por se tratar de uma artista que há 40 anos fotografa a si mesma exibindo-se nas mais diversas identidades, cuja obra antecipou aspectos hoje ainda mais banalizados na era das redes —do narcisismo exacerbado à facilidade como identidades são moldadas e desfeitas a cada semana—, a revelação de seu perfil atraiu um interesse imediato do mundo da arte.

Houve quem recomendasse sua galeria pessoal como a exposição do ano e houve quem a classificasse como uma produção mais fraca da artista.

E houve o crítico Jerry Saltz (@jerrysaltz), da "New York Magazine", outra figura célebre no reino da arte no Instagram. Para ele, as imagens de Sherman ali postadas não são nem uma coisa nem outra: "Ela nunca disse que eram um trabalho".

Em entrevista à Folha, ele afirma que a página "é mais uma forma de ver a artista pensando alto, e isso é incrível. Parece um processo de desenho, em que podemos ver uma falha, algo que não se desenvolve. Ao mesmo tempo, é a partir desse pensamento que pode surgir uma ideia, o que é sempre divertido acompanhar".

Hoje com mais de 250 mil seguidores, o perfil de Saltz constitui um dos mais interessantes mapeamentos da miscelânea de imagens nessa rede. Os trabalhos muitas vezes aparecem sem identificação ou em fotomontagens —exemplos mais próximos da realidade das redes.

Chistes com personalidades e com o modus operandi das artes são frequentes: o artista Jeff Koons já apareceu com uma fantasia de teletubbie, o galerista Larry Gagosian ganhou o apelido de Larry Gogo, numa comparação com Lady Gaga, e Klaus Biesenbach, diretor do MoMA, virou o protagonista de uma versão do filme "Uma Noite no Museu", uma piada sobre a publicidade ostensiva para os bailes de gala.

Ironias à parte, Saltz também sabe utilizar a rede como um fórum de debate crítico sem cair na superficialidade. Seus seguidores costumam se envolver com afinco em discussões sobre as postagens, algumas com mais de 400 comentários, das quais ele participa ativamente.

NUDEZ DELETADA

O perfil de Saltz também ficou conhecido pelas postagens de arte erótica que sempre estiveram na mira da censura em redes sociais. Entre suas imagens deletadas já esteve a de uma pintura francesa do século 17, na qual pelos pubianos de um homem estão à mostra.

De acordo com os critérios oficiais do Instagram, pinturas e esculturas que representem nudez são permitidas. A restrição a nus diz respeito apenas a fotografias e algumas partes do corpo. Como se vê, o controle feito com base em algoritmos não é livre de falhas.

Uma dessas imagens postadas recentemente por Saltz fez sucesso entre seus seguidores brasileiros: o detalhe ampliado de uma ilustração em que um homem aparece fazendo sexo com uma cabra.

A cena, como lembrou a artista Erika Verzutti nos comentários, é a mesma da pintura "Cena de Interior II", de Adriana Varejão, acusada de promover zoofilia, uma das motivações para o fechamento da exposição "Queermuseum", no Santander Cultural.

Desde esse primeiro episódio de ataques a museus por grupos de extrema direita, desenvolveu-se no Instagram uma intensa batalha de hashtags entre pessoas que defendiam as instituições e aquelas que as criticavam.

O ápice ocorreu após a performance de Wagner Schwartz na abertura da 35ª edição do Panorama da Arte Brasileira, no MAM-SP (Museu de Arte Moderna de São Paulo).

De um lado ficaram os que compartilhavam à exaustação a imagem descontextualizada da criança interagindo com o artista nu, marcada com a hashtag #pedofilianaoearte, com pouco mais de 1.300 postagens; do outro, os que se manifestavam a favor do museu, com versões do cartaz "Somos Todos MAM", que virou o nome da tag, com quase 2.000.

No segundo grupo, ganhou força o compartilhamento de imagens de nudez na arte como estratégia de protesto —e muitas pessoas passaram a ter suas postagens removidas pelo Instagram.

O debate sobre a censura das redes e as contradições nos critérios do que é considerado impróprio não é novo, mas voltou à tona com esses episódios.

Enquanto mamilos femininos são deletados sob qualquer circunstância, fotos mais eróticas parecem circular livremente. Ou, pior, imagens sem nenhum sinal de nudez às vezes são excluídas após alguma denúncia anônima, sem chance de defesa.

Um caso famoso envolveu Rupi Kaur (@rupikaur_), artista canadense de origem indiana. Ela comprou briga com o Instagram ao ter uma imagem de sua série "Period" (menstruação) apagada. A fotografia não mostrava nada além de uma menina inteiramente vestida e com a calça do pijama suja de sangue.

Aqui no Brasil, a artista Aleta Valente (@ex_miss_febem2) usou esse episódio como referência para uma série em que também se retrata menstruada. Na imagem mais conhecida, ela aparece vestida de branco e tem um dos pés atrás da cabeça, com a legenda: "O patriarcado está vazando. A misoginia está vazando. Não seremos censurados".

Um dos exemplos mais interessantes de artistas que passaram a explorar a autorrepresentação como performance utilizando as redes, Aleta tem um histórico de censura por essas plataformas.

Seu primeiro perfil no Instagram, @ex_miss_febem, foi deletado em janeiro por excesso de denúncias. No Facebook, a foto mencionada viralizou entre grupos antifeministas, resultando em verdadeiro linchamento virtual.

MASP

A abertura da exposição "Histórias da Sexualidade" no Masp (Museu de Arte de São Paulo), da qual Aleta também participa, inaugurou outro capítulo nas polêmicas sobre o compartilhamento de obras com nudez.

A princípio proibida para menores de 18 anos e agora apenas com classificação indicativa, a mostra também não podia ser fotografada. Desde que o museu passou a permitir fotos em suas galerias, em 2014, essa foi a primeira vez que os vigias controlavam os visitantes em qualquer movimentação suspeita com o celular.

Depois que a restrição etária foi revista, o museu aparentemente flexibilizou o controle. Mas, no dia da abertura, até quem tentava registrar o nome das obras nas fichas técnicas foi repreendido.

Para uma instituição que incentiva a lógica do compartilhamento utilizando sua conta quase exclusivamente para repostar fotos de visitantes, a atitude soou estranha. A resposta oficial sobre a decisão foi um tanto evasiva: dizia apenas que muitos proprietários dos direitos autorais não permitiram que se fotografasse essa mostra.

O mais curioso é que a informação foi dada pelo perfil do museu no Instagram (@masp_oficial), nos comentários a uma foto feita às escondidas na noite de abertura pela artista Santarosa Barreto, na qual ela criticava a proibição.

A obra compartilhada, por ironia, era o pôster da americana Zoe Leonard, "Read My Lips Before They're Sealed" (leia meus lábios antes que sejam selados, 1992), com a imagem frontal e em close de uma vagina.

Em tempos de controle e vigilância cada vez mais proeminentes, o episódio serve ao menos para indicar um caminho possível: na arte ou nas redes, quase sempre há alguma brecha para a resistência.

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NATHALIA LAVIGNE, 35, doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, é curadora e jornalista.

VERIDIANA SCARPELLI, 39, é ilustradora.


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