Folha de S. Paulo


Mônica Salmaso e a emoção de gravar primeiro CD de sambista de 80 anos

No finalzinho dos anos 90, aconteceu na Lapa, no Rio, uma espécie de reocupação musical.

Casas como o bar Semente (fechado em outubro) abrigavam gente nova cantando sambas clássicos, e a cantora (e amiga querida) Teresa Cristina formava seu público com Pedro Miranda e o Grupo Semente, assim como outros novos músicos.

Quando fui conhecê-los, em 2001, fiquei, como todo mundo, completamente emocionada com aquele repertório. Uma das músicas era "Doce na Feira", de Altair e Jair do Cavaquinho (1922-2006), que a Teresa cantou lindamente.

Foi uma paixão imediata pela canção, um samba-maxixe que parece antigo, bem humorado e que soa simples —mas que é, na realidade, fruto de sabedoria, como as músicas do Caymmi. Adorei tanto que acabei gravando no meu álbum "Iaiá".

Conversando sobre a música, soube que seu Jair estava para gravar seu primeiro disco, aos 80 anos. Ele, que foi importante compositor da Velha Guarda da Portela, participou do musical "Rosa de Ouro" e integrou Os Cinco Criolos (com Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Anescarzinho do Salgueiro e Nelson Sargento), não tinha ainda um álbum solo com suas composições.

Marco Aurelio Olimpio
Show de lançamento do CD de Jair do Cavaquinho (à frente), com Teresa Cristina (à dir.) e Mônica Salmaso (ao fundo, de mangas compridas) no coro

O disco estava sendo produzido pela gravadora Acari —lindeza criada por Luciana Rabello e Maurício Carrilho— e foi lançado pelo selo Phonomotor.

Naquela época, eu dava um curso na Oficina de Música de Curitiba, onde também eram professores Maurício e Pedro Amorim. Conversando com o Pedro, perguntei sobre o esperado CD do seu Jair, e ele me disse que estava quase pronto, com todas as bases gravadas, só faltando o coro.

Acho que dei bandeira e meus olhinhos brilharam, porque em seguida ele deu uma risada e disse: "Você não iria pro Rio pra fazer parte deste coro, iria?". E eu respondi: "Óbvio!".

Um tempinho depois, lá estava eu, por minha conta e para minha própria felicidade, voando para o Rio e encarando um metrô longo até Acari para conhecer o seu Jair e fazer parte do coro junto com a Teresa Cristina, Cristina Buarque, Pedro Miranda e uma boa turma.

Naquele mesmo ano, a equipe de programação do Sesc Ipiranga, em São Paulo, convidou a mim e ao produtor e amigo Homero Ferreira para idealizamos um projeto de shows para o teatro. Nasceu assim o Ponto In Comum, uma série de espetáculos —cada um com foco em um assunto, compositor ou sonoridade— que me ensinaram muito sobre a música brasileira.

Pensando na Lapa e com saudades da gravação do seu Jair, montamos, em 2002, a apresentação "Lapa" com ele, o Grupo Semente, Teresa Cristina, Cristina Buarque e as pastoras Surica e Doca, da Portela.

Fui, então, de novo ao Rio para fazer ensaios deliciosos e aprender muitos dos melhores sambas cariocas. Chegando lá, fomos visitar seu Jair na casa dele, o que envolveu uma viagem inesquecível de "frescão": um ônibus que sai do centro da cidade em uma longa jornada cuja temperatura pode ser adivinhada pelo apelido.

Ao descer no ponto que nos foi ensinado, logo um senhor nos viu com cara de turistas e perguntou: "Estão indo aonde?". "Na casa do seu Jair." "É naquela rua ali, aquela casa à direita."

Toquei a campainha e quem abriu a porta foi o próprio, com o CD recém-saído da fábrica na mão, para me entregar.

Estava devidamente vestido de compositor da Portela, com sapato e terno brancos, chapéu, colete azul bordado. Uma verdadeira nobreza de 80 anos com olhos emocionados e que já foi me perguntando: "Ficou lindo, não?".

Durante os shows, já em São Paulo, seu Jair nos trouxe uma foto incrível para divulgação. Eu não resisti e perguntei se poderia ficar com ela. Ele, então, pegou uma caneta, virou a foto e escreveu de improviso no verso: "À minha amiga Monica Carvalho, com carinho, Jair do Cavaquinho".

MÔNICA SALMASO, 46, é cantora. Lançou neste ano o álbum "Caipira".


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